Quanto tempo deve durar uma gira de Umbanda? Por quanto tempo a matéria aguenta? Neste relato vou contar para vocês quando fui conhecer uma casa no ABCDM paulista e me deparei com uma gira no mínimo inusitada, que durou por volta de 14 horas. Essa era uma casa tradicional de Umbanda, diferente de outros relatos passados aqui.


Fui convidado a participar de uma homenagem ao dia de São Cosme e Damião em um centro familiar na região do ABCDM paulista. Estava empolgado pois sabia que de dentro desse local havia várias história de milagres e de salvamentos de vidas, inclusive. Fui empolgado para compreender o seu ritual e ver como era aquela manifestação de uma casa popular com mais de 30 anos de experiência (se não mais).

O terreiro tinha como sede a casa da própria Mãe-de-Santo, e ficava no andar de cima aos fundos de um sobrado singelo da região. Lembro que entramos por um longo corredor (que também servia de garagem) e subimos uma escada dando de frente para o Quarto dos Exus e ao lado um grande quintal e uma porta com um cômodo onde se dava a gira.

Festas de Cosme e Damião são geralmente cheias de crianças e essa não era diferente, porém as crianças brincavam neste quintal enquanto os adultos ficavam no cômodo que era bem apertado com uma portinhola e cordão separando a área de assistência com três bancos largos e o Congá onde podíamos ver umas cinco ou seis pessoas (com a Mãe-de-Santo) espremidas.  Até então tava tudo lindo, pois é assim que a Umbanda é feita mesmo, na simplicidade.

Dentro da área do terreiro, ainda contávamos com dois atabaques e um só curimbeiro que para o meu espanto tinha um dos  braços atrofiados e eu não sabia como ele poderia tocar aquele atabaque com tanta maestria usando uma só das mãos. Juro para vocês que era uma curimba incrível, das poucas que vi sendo tocada com tanta energia. A mãe da casa era uma senhora já idosa, com mais de 65 anos e percebíamos seu jeito humilde de se portar. Pequena de estatura, franzina de silhueta, mas com enorme disposição para os trabalhos de Umbanda. Cheguei a ouvir na assistência as história de milagres produzidos pelos guias daquela senhora, só o que me deixou mais instigado ainda a ver como seria a gira.

A gira começou por volta das 11 horas da manhã e começaram a saudar diversas linhas, começando por Caboclos. Cantava-se para caboclos e caboclas incorporavam dentro do terreiro e assim foi ocorrendo a gira, com mais pessoas chegando com o passar das horas e se aninhando dentro da assistência. Contudo, nada ainda da manifestação dos Erês.

Eu sai diversas vezes para a área externa, para tomar ar pois estava ligeiramente tonto. Quando ouvi um compadre me dizer:

– Atente-se para a observação e não ceda sua cabeça!

Para ser bem sincero fiquei incomodado com aquela observação, como poderia não ceder a cabeça em um ritual tão lindo ou melhor, porque eu também cederia?! Não faria sentido, sempre fui muito regrado em manifestação exterior, nunca incorporei em terreiro alheio. Voltei para dentro do cômodo que servia de terreiro e me deparei com uma chamada de Ogum soando nos atabaques, então os médiuns começaram a incorporar os falangeiros de Ogum. Nesse exato momento uma moça da assistência levantou e começou a bradar e gritar e girar e entrou dentro da corrente mediúnica.

Vou frisar aqui: “Ela levantou, ABRIU A PORTEIRINHA INCORPORADA e entrou e começou a girar”.

Parou a cantoria para Ogum, ela desincorporou e voltou para a Assistência. Agora o Ogã havia sido substituído por outro mais jovem e um “curimbeiro” havia chegado, um cantor de candomblé dos bons. Começou puxar pontos diversos e dentre esses começou a chamar Oxum, que se manifestou na Mãe de Santo e foi “devidamente” vestida com vários paramentos e saiotes rosas, cobriram-lhe o rosto e ela começou a cumprimentar todos os filhos.

Os médiuns se aproximavam dela, batiam os braços cruzado por três vezes, tocavam os ombros por três vezes, deitavam no chão e batiam cabeça para a Oxum. Todos os médiuns fizeram isso e isso se repetiu para todas as linhas, correntes e afins depois.

Então Oxum sentou-se em uma cadeira decorada como um trono e deu permissão para os Erês virem a terra, enquanto as ajudantes iriam distribuir os doces para as ávidas crianças que estavam no quintal. A erêzada começou a chegar e a se manifestar gritando, brincando e correndo por todo o congá. O que mais me chamou a atenção foi que a médium do Ogum também incorporou e voltou para dentro da gira, depois claro de ter aberto a portinha incorporada de Erê.

Uma das médiuns que lá estavam levantou e começou a mexer com a platéia (assistência) e disse que seu nome era Estrela Azul de Cosme, algo assim. Nunca ouvi esse nome de erê, mas como meu amigo havia me alertado que algumas entidades vinham mais de raiz do candomblé, eu aceitei, pois não conheço totalmente as entidades que se manifestam nos cultos candomblecistas. Porém, essa confiança caiu por terra, quando o erê se levantou, pegou um saquinho de plástico e começou a passar na assistência pedindo dinheiro e dizendo que não podia ser pouco, tinha que ser nota grande. Isso me revoltou na mesma hora! Ele ainda confirmava que quem não desse dinheiro pro Papai do Céu ia ter a vida e as necessidades dificultadas, porque tem que aprender a dar.

Eu olhava as pessoas que lá estavam e via gente bem de vida, mas também gente bem humilde. Não é possível que uma entidade espiritual peça isso. Entristeci de vez e olhei pela primeira vez no relógio e já haviam se passado quase 12 horas de gira. Estava ali sem fome ou sede, ou vontade de ir no banheiro durante todo esse tempo. Uma espécie de transe hipnótico que só foi despertado após esse pedido de dinheiro.

Os erês depois de muita farra foram embora e deram lugar aos Baianos ou Cangaceiros como eles se chamaram e o Zé Baiano se manifestou na Mãe do Terreiro e olhou diretamente para mim no fundo do terreiro e me ofereceu Cachaça. Eu refutei educadamente, dizendo a ele que iria dirigir e não podia beber e o mesmo rebateu com:

– Tu não confia na espiritualidade? Tome aqui o tanto que quiser que tu não vai ser pego pelos macacos não.

Macaco é o nome usado para designar os policiais, porém agora estava lúcido e sabia que uma entidade jamais iria pedir para infringir a lei dos homens para algo puramente banal como tomar um copo de cachaça. Nisso meu amigo havia ido para o atabaque (pois o fluxo lá tanto de médium, quanto de curimbeiro era constante. Qualquer um que sentia irradiação, incorporava e ia girar lá dentro) e percebi que ele começou a ficar irradiado e seu Zé Pelintra se manifestou nele, anunciando que em breve viria o povo da esquerda para fechar os trabalhos. Pedi para falar com ele, pois confio na idoneidade desse amigo e seu Zé me foi tão carinhoso, me deu tantas palavras bonitas e cheias de sabedoria, que entendi que era chegada a hora de ir embora.

Dei tchau a entidade e avisei a minha companheira na época de que precisávamos ir. Ao entrar no carro, notei que o relógio digital apontava o horário de 01 da manhã. Acredito que tenha sido a mais longa gira que eu tenha tomado parte e também uma das mais confusas na minha mente.

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