Jorge é da Capadócia e Ogum é de Irê!

Escrevo esse texto no dia 23 de Abril de 2024, onde os temas sobre representatividade e pertencimento da religião são mais evidenciados nas redes sociais. Inclusive, redes sociais que de certa forma trouxeram visibilidade para alguns, mas também muita desinformação e “sabedores” de tudo que se pode ter ideia, mesmo que a pessoa não saiba fritar um ovo. Enfim, o texto não é para falar sobre isso, mas para falar sobre a figura de São Jorge e a figura de Ogum como grandes representantes da espiritualidade brasileira.

O que é preciso entender é que o território onde hoje chamamos de Brasil é uma terra com história anterior, com diversos povos habitando essa terra desde épocas muito antigas, pré-históricas. Seja como for, a história está sempre sendo revisada para explicar a origem dos humanos em solo americano. A história diz que o ser humano teria atravessado o congelado Estreito de Bering que liga a atual Rússia com o atual Alaska há 10 mil anos, entretanto encontramos fósseis no Brasil, como o caso da Luzia, com mais de 12 mil anos (12500 a 13000 anos), e a cada dia que passa mais informações são adicionadas nesse mistério.

De onde vieram esses povos? Ninguém pode ter certeza, mas que eles encontraram um jeito de chegar aqui, encontraram. Com o passar do tempo muitos desses indivíduos foram dando origem aos homens modernos, inclusive aos povos nativos de todo continente americano. Desta foram, podemos dizer que na sociedade dos povos nativos antes de 1500, existiam diversos (centenas) de deuses, entidades e religiões. Com a chegada dos portugueses no território de Pindorama (que vem a ser o Brasil hoje) e depois com a escravidão dos povos africanos, teremos uma confluência do pensamento religioso.

Esse pensamento, cria um amálgama entre o que já existia e o que viria a chegar em terras brasileiras. O que muitas pessoas não conseguem conceber é que o ser humano é fluído em suas crenças e justamente o radicalismo e fanatismo é que geram guerras e dizimação persecutória de populações. Hoje vivenciamos uma perseguição ao movimento das religiões afro-diaspóricas, entre elas a Umbanda, vistas como “religiões do demônio”, algo que eu tenho até muito a falar, mas em outro texto.

Além desse pensamento de perseguição, temos a perseguição dentro do próprio movimento afro-diaspórico, onde determinadas pessoas julgam outras por questões étnicas, fisiológicas e culturais, e questionam o seu pertencimento a essas religiões. Eis o âmago do que quero tratar aqui.

São Jorge é um santo mártir, um santo de extrema importância para a Igreja Ortodoxa e menor em importância para a Igreja Católica, que há muito tempo tenta diminuir a imagem do santo, por não ter provas reais e cabais de sua existência. São Jorge é um santo canonizado pela sua santidade interna e que só era possível de ser vista pelos olhos de Deus, ou seja, existem muitas lendas, mitos e poucas provas. Podemos nem sequer saber se um dia houve um homem chamado Jorge, na região da Capadócia (atual Turquia) que tenha sido soldado romano. Mas não importa se ele existiu ou não, hoje ele existe, pois a sua imagem, sua ideia, seu conceito tomaram forma pela fé (manifestação de servos astrais e criação de divindades) e com o culto deu autonomia e individualidade a essa figura. Seja como for, hoje os devotos de São Jorge conseguem provar os milagres em suas vidas, promovidos pela fé neste santo. E eis o ponto crucial quando se trata de religião: A FÉ! Ter fé é fundamental para o processo religioso, pois é CRENDO e não provando que temos a manifestação clara do poder de uma religião. Muito de uma religião não importa se existiu ou se aconteceu historicamente como é dito nos livros religiosos. O processo de crença é muito importante para dar uma outra cara para a experiência humana na terra. Hoje vivemos em um mundo onde tudo tem que ser provado e aprovado, por métodos científicos que não cabem dentro da religião. Você pode até torcer o nariz para isso que estou dizendo, pois a fé não precisa se provar, ela precisa ser vivida, experenciada e não explicada, entretanto, essa visão de que algo precisa ser provado é atual, coisa do começo do século XX, ou seja, pouco mais de 100 anos. Como explicar toda a experiência de milênios da humanidade com uma “teoria” de 100 anos? Mas é isso que fazemos, a atual geração sempre olha para o passado achando que eles eram incapazes, burros, ignorantes e simplórios! Mal sabem a verdade…

Ogum, por sua vez, é uma divindade Iorubana, que começa a sua trajetória como um deus caçador-coletor, depois um deus agricultor, um deus da metalurgia, até tomar a forma do deus da guerra e da batalha. Ogum é uma divindade civilizatória, ela traz dentro de sua essência a ideia de que os povos eram nômades, que aprendem a caçar e coletar, depois se assentam em suas vilas, produzindo a agricultura com o auxílio da metalurgia e posteriormente devendo proteger esse assentamento, seus morados e seu alimento contra invasores. Veja que Ogum representa a própria progressão humana de vida nômade para vida sedentária. Por ter tantas atribuições, podemos dizer que Ogum é a divindade do progresso, da tecnologia e da civilidade. Com tamanha importância, claramente seu culto seria expandido para diversos outros núcleos além da própria civilização originária.

No Brasil, temos a figura de Ogum vindo a ser relacionada mais a questão bélica e marcial, por um motivo muito claro, é disso que aquele povo precisava naquele momento. Ogum é o que defende, é o que protege e o que cria capacidades aos homens e mulheres que estavam escravizados. Por que Ogum deveria ser o agricultor, sendo que seus fiéis estavam sofrendo perseguições e cativeiro? Por que ele deveria criar tecnologias, sendo que isso só beneficiaria o captor? Então, ele se torna o guerreiro (ou toma a sua capa de guerreiro) para proteger o povo explorado do abuso de seus feitores. A associação de Ogum com São Jorge se dá por essa via da batalha, da guerra e da estratégia. São Jorge é dito que teria vencido o Dragão, figura que dentro da mitologia cristã remete ao próprio mal, entretanto, essa é uma visão mais moderna e de deturpada interpretação. Jorge da Capadócia viveu antes de existir um catolicismo, tendo supostamente morrido em 303 D.C., sendo que Constantino, que promulga o cristianismo e dá bases para a fundação da igreja católica só será proclamado Augusto (César, Imperador) em 306. Apesar de ter evidências de que há um cristianismo pré-Constantino desde o ano 30 D.C. que virá a dar bases da Igreja Católica, não podemos associar o cristianismo antes de Constantino a própria Igreja Católica, fundada em 313 D.C., sendo assim temos que Jorge teria morrido 10 anos antes da criação da Igreja Católica, sendo ele um representante da fé cristã primitiva, que era bem distante do que é promulgado pela própria igreja católica.

O dragão em entendimento de culturas pré-cristãs, sempre foi visto como um ser mágico, que comandava os quatro elementos básicos, que constituem tudo que existe: Ar, Terra, Fogo e Água. Sendo que era uma criatura que voava, cuspia fogo, cava e adorava metais preciosos e nadava (em algumas lendas, respirando embaixo d’água) com maestria, em outras palavras, ele dominava todos os elementos. Quando vemos a figura de São Jorge domando o Dragão (e não matando ele), podemos dizer que Jorge tomou a assunção dos poderes naturais para si, se tornando um mestre em feitiçaria, em comunhão com a natureza do cosmos. As história depois são contadas conforme o prisma católico que virá a ser reinante, mas se olharmos pelos olhos das crenças mais antigas, que devem ter perdurado dentro dos grupos de cristianismo popular e da bruxaria ibérica, podemos perceber o quão importante essa figura se tornou. Esse conhecimento desembarca no Brasil com aqueles que foram exilados por práticas hereges, já em época colonizatória. Essas pessoas não eram pessoas ricas, letradas ou de grande ascensão social. Muitas deles só lutavam para sobreviver a mais um dia, sem criar grandes estratagemas de dominação de outros, mas apenas lutando para ter mais um prato de comida. Muito dessa sabedoria encontra respaldo na luta e vivência dos povos africanos escravizados e dos próprios indígenas escravizados e perseguidos em sua própria terra. A comunhão do pensamento, se transforam em troca cultural e de saberes, que por sua vez se torna magia e conhecimento popular. Eis onde, o santo guerreiro que luta contra a opressão do Imperador e a perseguição das minorias, encontra com o Orixá guerreiro, que defende seu povo da opressão daqueles que detinham o poder à época.

Hoje, é muito fácil falar que não precisamos mais do sincretismo, que foi uma associação importante na época, mas que podemos nos despir disso, mas se despir disso é se despir totalmente da origem da sua própria essência como povo brasileiro. Eu entendo que muitas pessoas vão ler esse texto e achar vários rótulos para mim, que de fato não cabem, mas na cabeça delas fará sentido, afinal elas precisam sempre encontrar um alvo, um inimigo para suplantar suas próprias essências descontinuadas. O grande problema aqui não é pensar diferente, mas não respeitar o pensamento diferente, atribuindo a uma ideia absurda de usurpação de algo que nunca teve dono, como é o caso da Religião.

As práticas espirituais brasileiras estão abertas a TODOS os brasileiros, independente de sua formação social, cultural ou étnica. Não adianta tentar dizer o contrário, todos nós somos cidadãos dessa terra, protegidos por leis que nos permitem ter a manifestação livre de nossa crenças. A crença não é propriedade do estado, de uma federação ou de um grupo de pessoas, a crença é individual. Mesmo promulgando uma religião similar, a crença sempre será individual dentro de cada um, ou seja, se eu quero acreditar em São Jorge e Ogum como um só, nada me impede, assim como se eu quero distanciar as duas figuras e cultuá-las paralelamente, nada me impede. Não existem órgãos centralizadores ou livros sagrados que definam isso, a não ser a sua crença pessoal, afinal, você pode até falar publicamente X e fazer Y no seu espaço privado (que acontece em muitos terreiros).

Eu nunca vou afirmar que São Jorge é Ogum, mas ele pode ser para alguns; e nunca vou refutar a pessoa que assim acreditar, sabe por quê? Porque se formos pensar dentro da formação da Umbanda, advinda da Macumba, perceberemos que ela tem raízes muito mais profundas, traçando um caminho ao contrário teremos que a Umbanda surge da Macumba, que surge das Cabulas, que surgem dos Canjerês, que surgem dos Calundus, que surgem da união de práticas africanas e indígenas, que surgem de práticas nativistas africanas e indígenas etc. Então, a força bélica que teríamos aqui a princípio no Brasil seria a de Roximocumbi ou Nkosi, um Nkisi banto que se assemelha a Ogum. É bem mais lógico pensar que foi Roximocumbi que se associou a São Jorge a princípio, tendo Ogum entrado na história só no final do século XVIII começo do século XIX. Então se for falar de pureza doutrinária, deveríamos rever muita coisa… inclusive o urso de determinadas ervas de origem europeia, ameríndia, comidas de santo que são feitas com elementos encontrados na américa etc. Entendam que o processo sincrético é muito mais profundo do que apenas uma associação e que se visto de forma correta, como algo orgânico e natural do mundo e do ser humano, não causa nenhum tipo de mal, pois você procura a explicação, as origens, as histórias formadoras e não se contenta com o que uma “sumidade” disse. Seja como for, já espero o burburinho do texto… mas minha função é fazer com que vocês saiam do comodismo das suas mentes, pensem por conta própria e se libertem dessas amarradas que tentam imputar a vocês. Quando você pensar na pessoa que segura seu laço, lembre-se de ver não só o europeu, mas também o pastor, o militante, a mídia, o grande sábio, o influencer que tem agendas próprias que não divulga por aí etc. Cuidado é essencial e você só saberá como ter cuidado se tiver um pensamento livre e crítico.

Saravá Ogum, aquele que abre todos os caminhos e rompe os grilhões da ignorância!

Saravá Jorge, aquele que luta por nós todos os dias!

Saravá Nkosi, o grande leão que devora os ímpios!


 

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