A malandragem parece que exerce um fascínio na mente das pessoas que extrapola os limites do possível. Esse fascínio muitas vezes nubla o pensamento para questões básicas, gerando o culto ao banditismo, assim como houve no cangaço nordestino. Isso ainda se faz tão presente na nossa sociedade que vemos hoje jovens que se acham incríveis por cantarem músicas que exaltam crimes, violências, sexualizando tudo, vulgarizando tudo e todo tipo de vida inadequada para uma pessoa como se fosse a coisa mais comum e normal do mundo.

Isso passa também ao campo da religiosidade onde os malandros agora se manifestam de uma forma totalmente espalhafatosa, abrindo seus largos sorrisos, dançando suas gafieiras e arrancando suas camisetas para exibir os músculos tatuados de seus médiuns, cheios de cordões dourados (porque não sabemos se é ouro mesmo ou apenas ouro de tolo – afinal o tolo já está ali).

Em contraponto temos as pessoas que ficam preocupadas de estarem trabalhando com certas entidades, por elas terem uma vida um tanto quanto condenável. Eu sei que parece dúbia essa afirmativa, mas precisamos entender algumas coisas antes de começar a falar o tanto de “groselha” que se fala por aí.

Deificação de uma alma não tem a ver com ela ter sido bondosa ou seguido os preceitos de Deus. Na verdade, a deificação ou encantamento é um processo muito mal-entendido, uma alma se encanta ou se deifica pelo seu próprio axé, pelo seu nguzo e pela sua experiência espiritual. Entretanto em alguns casos essa deificação não consegue ocorrer, aí o espírito caí e se torna um Kiumba. O espírito ter sido um bandido, não impede ele de se deificar, vejam o exemplo de Jesus Malverde, uma entidade mexicana, da província de Sinaloa, que se deificou pelo culto de outras pessoas. Ele supostamente era um ladrão, um narcotraficante, que teria sido captura e executado, entretanto ele era visto como uma espécie de Robin Hood, roubando dos ricos e dando aos pobres. Um exu também pode ter sido um bandido, um assassino – como no caso do Exu 7 Facadas e do Exu Matança (esse um Kiumba) – mas ele teve – ou não no segundo caso – sua deificação. O que fez ele ser deificado? Seu poder pessoal, seu culto e sua capacidade de conseguir extrair nguzo naturalmente sem “vampirizar” terceiros.

Dentro do entendimento da Quimbanda, todo iniciado se prontifica a se tornar um Exu, buscando a deificação da sua alma, rompendo com o ciclo das encarnações – e isso não faz dele bonzinho. Entretanto, sabemos que alguns quimbandeiros usam mal de seus saberes e ofícios – e aqui não estamos falando sobre o viés maniqueísta – e, portanto, não conseguem essa deificação, o que ocorre é que ele se torna um Kiumba, um espírito com grande conhecimento, mas que não consegue ainda romper o ciclo das reencarnações e nem se alimentar de forma independente, precisando de entregas ou de vampirização para tal.

Tudo que estou falando é em linhas gerais e bem superficialmente, pois muito deve ser compreendido dentro de um panorama muito amplo que seria ineficiente escrever em um artigo.

O que faz de Zé Pelintra ter se deificado e o Zé Pretinho não? Sua condução na vida e sua capacidade de culto. Dentro dos saberes que recebemos da Espiritualidade, sempre nos foi dito que Zé Pelintra é um grande conhecedor de artes mágicas e religiosas, e apesar de ser o malandro boêmio, guarda-costas de bicheiro (pois é), grande capoeirista, ele também tinha preocupações próprias com outros indivíduos. Zé Pretinho seria algo mais egoísta, só pensando nele mesmo. Mas isso definiria um virar Kiumba e outro não? Não exatamente, o que define é a forma que cada um angariou poder.

A espiritualidade nos ensinou que Zé Pelintra sempre é acompanhado de um Zé Pretinho – e de um Exu chamado Lorde da Morte – sendo que o Zé Pelintra é o relações públicas, diplomata, o político e o Zé Pretinho é o faz-tudo, capataz, executor. Um Zé Pretinho se tornará um Exu? Sim e não… A entidade que usa o nome Zé Pretinho pode vir a se tornar um Exu, após seu reencarne e sua nova vida, se tornando um outro malandro deificado. Mas um espírito não pode se deificar em morte? Bom, aqui temos duas respostas: Segundo a tradição não é possível um espírito se deificar em morte, segundo o Exu Tiriri da Calunga é possível sim, e agora? Bom eu fico com a fala do Exu Tiriri, afinal o conheço muito bem para ter segurança na sua afirmação.

Desta forma, o próprio Zé Pretinho poderá se deificar e trabalhar de outra forma? Sim, é possível, mas improvável, pois normalmente eles “escolhem” a volta. Não me perguntem o porquê! Simplesmente escolhem… São poucos o que se mantém assim, e aqui uso o exemplo do Exu Pedra Preta, que muitos autores dizem que já poderia ter “saído” da categoria de Exu, mas prefere ficar assim. Veja, é uma preferência da entidade.

Então, existem muitas nuances nesse processo. Trabalhar com malandros é difícil, afinal a malandragem lida com aspectos da humanidade que são bem complexos: desejos, medos, embriaguez, boemia, vida noturna, drogas, violência, sexo desenfreado etc. Se uma pessoa não está preparada para isso, sem se deixar contaminar, ela será afetada gravemente, podendo sucumbir a todos esses prazeres inebriantes que a Lira possui, mas a malandragem exerce de forma bem visceral.

Hoje em dia, glorificar um malandro é totalmente sintonizado com o estilo musical, com os vídeos de tik tok, com a sociedade superficial que possuímos e os malandros nos mostram isso, eles são especulares, eles refletem o nosso interior de uma forma bem bizarra ao mundo.

Mas você deve ter medo de trabalhar com esses espíritos? Lógico que não, você deve saber doutrinar seu próprio espírito, pois um Kimbanda busca se tornar um mestre da vida, que sabe para onde vai, sabe de onde veio e que ninguém manda nele. Isso é preciso para você se tornar uma alma deificada, a sua independência espiritual.

Kiumbas dentro da Quimbanda são espíritos que tem diversos usos e propósitos e muitos Exus usam deles para seus trabalhos. Apesar que temos muitos Kiumbas solitários que não se curvam aos Exus, aí é uma outra história. Sendo assim eu reafirmo: “Trabalhe com seu Zé, mas não queira ser seu Zé! Trabalhe com o Zé Pretinho, mas saiba que você não é o Zé Pretinho!”

Saravá a banda!


 

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