A Quimbanda sempre teve a aura de ser uma religião misteriosa, fechada dentro de seus cultos, algo totalmente clandestino que só era feito na sombra da noite, entretanto, isso está antagonizando com o que vemos hoje da Quimbanda, com tantos supostos quimbandeiros abrindo redes sociais e postando seus trabalhos. Aqui, nesse sentido, devemos ter um pouco de cautela para analisar o que está acontecendo no cenário religioso afro-diaspórico brasileiro.
Primeiramente, é importante ressaltar que a Quimbanda durante muitas décadas, realmente, era algo fechado e muito restrito. Isso não muda, porém hoje, com o avanço das redes sociais, podemos ter mais noção em conhecer supostos quimbandeiros. Não que os rituais estejam expostos, que os segredos estejam revelados, nada disso, é porque a rede social permitiu que a gente transitasse por diversos lugares, que geograficamente era impossível antes. Então, o quimbandeiro que antes fazia sua clientela pelo boca-a-boca, hoje tem a rede social como sua aliada para divulgação de seus serviços, entretanto ele não irá revelar seus segredos de culto. Isso é importante ressaltar sempre, mantendo o hermetismo dentro da prática quimbandeira.
Entretanto, o que ocorre é que com a popularização, também se abrem espaços para muita gente mal-intencionada e sem preparo para se autointitular algo que ele não é. Desta forma, se hoje vemos um número considerável de quimbandeiros na internet, podemos dizer – sem medo de errar – que menos de 1% realmente são quimbandeiros, que receberam de mestres autorizados e consagrados a suas outorgas sacerdotais e maestrias, que realmente foram iniciados no culto e que realmente seguem o ramo tradicional de Quimbanda, por meio da transferência de nguzo de mestre à discípulo.
Isso ocorreu com outras religiões no passado, como na Umbanda, principalmente a partir dos anos 1999, onde uma profusão de autoiniciados começaram a praticar Umbanda de forma descabida. Até hoje colhemos o resultado dessa sandice dourada que ocorreu. Na Quimbanda, está ocorrendo o mesmo, mas isso em parte é culpa desses falsários e em parte é culpa do público que sempre procura pessoas com posições radicais, que querem chamar atenção, que estão em busca de encrenca e que não compreendem de fato o que é a Quimbanda.
A Quimbanda não é a prática do mal em si, mas também pode praticar o mal, dentro do ponto de vista da nossa sociedade doentia. Porém, o público, busca aqueles que fazem cara de mal, que postam violências em suas redes sociais, que querem ser o Mister M da Quimbanda, revelando seus segredos ocultos, aqueles que aparecem em podcasts falando bobagens, mas com grande retórica, que ameaçam e atacam a todos. Na verdade, essas pessoas são crianças mimadas que cresceram só no tamanho. A Quimbanda é o caminho da excelência, da maestria! O Kimbanda se torna um mestre da Vida! Como mestre da vida ele não se importará com questões menores, com arranjar encrencas ou promulgar isso publicamente, ele simplesmente agirá, como todos os Kimbanda antes dele, pelas sombras, coberto de trevas. Como diz seu Exu Tiriri da Calunga: A bota não pede licença para a formiga.
O que ocorreu em 1999 com a promessa de fácil ascensão dentro das fileiras de Umbanda, ocorre agora dentro das hordas quimbandeiras. Várias tradições que imediatamente te levam a maestria, mesmo que de forma filosófica, que é má compreendida. Com isso dá-se uma abertura para erros, confusões e a falta de experiência, além do ego, da vaidade e da cupidez que sempre aparece. O que existe de supostos “quimbandeiros e mestres quimbandeiros” que só querem a Quimbanda para saciar sua fome sexual, não está escrito!
Dentro dos troncos tradicionais de Quimbanda, o adepto deverá passar pela experimentação, pela experiência, nunca será alçado como sacerdote e mestre, sem ter o mínimo de preparação e experiência para isso. Então, pode até ser que um sacerdote de Umbanda, com missão sacerdotal e vida sacerdotal pública de anos, possa receber diretamente o sacerdócio dentro do tronco tradicional? Pode… Mas, nunca ele irá receber diretamente a maestria, o tornando um Tata ou Mameto. Mas o jeito correto, a tradição diz, que é por meio de passo a passo, galgando cada degrau, então, dentro da nossa estrutura: Noviço, Iniciado, Sacerdote e Mestre. A exceção que ocorre é sobre o noviçado, que pode ser pulado, caso o adepto tenha estrutura para adentrar a Quimbanda de forma correta.
Esses graus não se alcançam mensalmente, ou seja, deve ter merecimento e deve-se recolher todas as obrigações pertinentes a eles.
A proposta da Quimbanda não é parecer trevoso, não é ser um badboy. A proposta da Quimbanda é dar ferramentas para que o adepto se torne independente e domine a sua vida, melhorando a si e aliando-se a Exu, comungando com Exu e cultuando Exu.
A missão principal é o contato com o Espírito Tutelar, que em nossa tradição é um Exu ou Pombagira. Por meio dessa figura, toda a magia e religião se processa dentro da Quimbanda. Exatamente por isso é que mesmo no batismo o noviço recebe uma estrutura de firmeza para cultuar seu Exu e estreitar os laços com ele. O batismo não é meramente uma apresentação ou uma entrega de uniforme para posar para fotos, mas sim uma permissão temporária, um salvo-conduto para que o noviço possa navegar nas águas turbulentas e tenebrosas da Kalunga.
Então, com o trabalho, diário, com Exu você começa a estreitar seus laços, até estar pronto para a iniciação e pactuação. Essa pactuação fará com que exu se torne presente em sua vida o tempo todo, criando um vínculo, uma relação de dupla, onde tudo que for benéfico para ti, será para o exu e vice-versa, nesse momento o exu se torna um Compadre e a Pombagira uma Comadre!
A iniciação implica em ainda assim mergulhar mais profundamente nos mistérios do seu Espírito Tutelar e quando isso estiver satisfatório (mas nunca perfeito, pois é um trabalho de uma vida inteira) se abrirão portas para que você conheça os outros espíritos da sua coroa e de sua legião. Quando tiver com sua coroa (trindade) de exus firmada, com sua proteção e proteção de seu Exu firmada é que você poderá galgar o sacerdócio, onde, aí sim, você poderá atender outras pessoas, pois terá fortalecimento, terá mais sabedoria e terá experiência na lida com Exus.
O sacerdócio se abre, permitindo ao adepto agora oracular e praticar serviços para terceiros, podendo comungar com seus próprios Exus e com Exus chamados ao trabalho pelo seu Tutelar, podendo alimentar os Exus de terceiros e muito mais. Veja que aqui, ainda estamos em aprendizado, pois temos várias obrigações e fundamentos a serem recolhidos, até que estejamos completos e que tenhamos caminho para a Maestria.
Na Maestria, você recebe uma autoridade sobre os espíritos, é reconhecido como um Exu em vida, deificando sua alma para a proposta da Quimbanda. O Mestre é aquele que pode criar moradas de poder para os Espíritos (Assentamentos), é aquele que pode iniciar novos adeptos no culto e aquele que tem autoridade no mundo espiritual. Veja, que até chegar à posição de Mestre (Tata ou Mameto) há uma longa jornada a ser seguida…
Além disso, algo extremamente importante para a Quimbanda é a relação de ancestralidade, seja ela a sua pessoal, seja a espiritual. Invariavelmente é preciso ter lastro ancestral da sua iniciação, sabendo dizer quem é seu aprontador, quem foi o aprontador dele e assim por diante. Não precisa saber toda a árvore iniciatória, mas pelo menos o aprontador do seu aprontador é importante. Mas sabemos que muitos escondem isso, ou simplesmente dizem que são pessoas inacessíveis ou que já morreram, ou ainda, dizem que receberam dos seus próprios Exus essa outorga… o que contradiz toda a tradição que os próprios Exus defendem.
Diante de tudo isso que foi exposto, vocês conseguem agora avaliar melhor as coisas na busca… Trabalhar com Exu não te faz quimbandeiro… Usar capa, cartola, anel e bengala, não te faz quimbandeiro. Postar fotos de sacrifícios e assentamentos, não te faz quimbandeiro. Usar termos como “Tata” e “Mameto” antes de nomes supostamente iniciáticos, não te faz quimbandeiro, se você não puder provar quem te entregou isso. O que te faz quimbandeiro é o lastro ancestral e transmissão dos saberes e do nguzo pela via da tradição.
Não somos fiscais do culto alheio, mas me pedem constantemente para falar sobre o tema para auxiliar as pessoas que vão em busca da sua espiritualidade, desta forma, está aí o tema debatido. Agora você consegue discernir?
Tata Nganga Zelawapanzu
Mestre de Quimbanda Nàgô e Quimbanda Mussurumim
Dirigente do Templo de Quimbanda Cova de Tiriri