Este texto poderia facilmente se chamar: “Demonologia na Quimbanda: Por que você tá falando besteira o tempo todo?”, afinal muitos afirmam que em África não havia a ideia de maldade e que a demonologia e diabologia da Quimbanda é uma atrocidade cometida por quem nada entende de macumba.

Mas será mesmo?

Nós devemos sempre compreender, que apesar da quantidade de informações que hoje temos a disposição, a faculdade do pensar crítico é algo restrito a algumas pessoas que se esforçam para entender além do véu da ignorância. Isso não quer dizer que só acadêmicos e intelectuais podem ser capazes de compreender sobre os artigos que discorremos, longe disso. Até mesmo porque quem determinou o diabolismo e a demonologia na Quimbanda eram pessoas sem títulos acadêmicos que o faziam pela prática, pela tradição e pelo entendimento das coisas na sua vivência pessoal

Para entender a formação de uma religião, devemos compreender todo o escopo de sua formação, sempre colocando à frente em nossas mentes que não há PUREZA DOUTRINÁRIA, sendo assim, nenhuma religião é isenta de influências culturais de outros povos. A religião é uma forma cultural de designação de uma identidade de povo, hoje isso está menos evidente, restando praticamente apenas os Judeus e os Muçulmanos, que em sua maioria tem origens “biológicas” sobre a religião, sendo os Judeus ainda mais significativos nisto, pois você tem que nascer com o sangue judeu para ser considerado um, podendo assim praticar o conjunto de religião, cultura e vivência judaico.

Mas como fazemos quando há uma miscigenação e um apagamento das origens culturais? Como faz quando um povo é formado de diversos tipos de influências culturais estrangeiras, que tiveram que se adequar ao modo de viver do novo mundo? Para essas questões, sempre fica a dúvida…

O Brasil, queira você ou não, sofre influência de diversos povos em sua formação, desde os indígenas, passando por africanos de diversas regiões do continente africano e os portugueses principalmente, contudo ainda podemos considerar a influência espanhola, italiana, alemã, libanesa, síria e japonesa (sem contar outras influências). Com esse amálgama cultural, vamos ver diversos tipos de religiosidades sendo expressos, como o catolicismo europeu, o catolicismo popular, a bruxaria ibérica e ciprianica, sem citar outras questões como a influência árabe, islâmica na Ibéria e no próprio Brasil, as ortodoxias cristãs, as manifestações de religiosidade banto, jeje e nagô, o islamismo malê, a cultura dos grimórios, o protestantismo alemão e a religiosidade nativista dos povos indígenas (que é plural e múltipla).

A visão da religiosidade ocidental foi moldada pelo cristianismo, desta forma, precisamos compreender as bases da religiosidade que vem a dar forma ao cristianismo. O cristianismo em seus tempos primeiros era considerado uma heresia do judaísmo, entretanto o próprio judaísmo não é uma religião ancestral, sendo que diversos professores discorrem sobre a existência de dois “cultos” judaicos, o pré-exílio e o pós-exílio. A região onde consideramos que existia o Reino de Israel, também contava com o Reino de Judá e segundo informações que hoje temos através dos arqueólogos religiosos, podemos constatar que o judaísmo é uma resultado do Reino de Juda, que ficava ao sul de Israel, sendo que Israel não era o país dos judeus, mas dos israelitas.

Inclusive é importante relatar que o Reino de Israel tinha como capital a cidade de Samaria, de onde provinham os Samaritanos e acho que você deve se lembrar dessa passagem bíblica sobre os samaritanos, na parábola do bom samaritano:

“30 Em resposta, disse Jesus: “Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto. 31 Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. 32 E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado. 33 Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. 34 Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. 35 No dia seguinte, deu dois denários[c] ao hospedeiro e lhe disse: ‘Cuide dele. Quando eu voltar lhe pagarei todas as despesas que você tiver’.” (Lucas 10:30-35).

Os samaritanos eram vistos como rivais do povo do Reino de Judá, tanto que nesta parábola vemos um certo “afronte” quase dizendo que “até um samaritano” ajudou alguém e não um judeu em si, ou sacerdote como diz o texto que é o mesmo que dizer Saduceu , ou um levita, ou seja, um descendente de Levi, que detinham controles políticos e religiosos mais tradicionais.

Os povos de Israel, segundo a professora Ângela Natel, carregam em seu próprio nome a adoração de seu Deus, ou seja, El, sendo que o termo aceito para a tradução do nome seria “Aquele que luta com Deus”, mas que Deus? O Deus El, o mais importante deus da religião canaanita, que também era Deus de Israel. Na Bíblia e na teologia moderna nos é forçado a acreditar que El e Javé são o mesmo deus, mas percebemos pelos estudos arqueológicos que isso não procede, que essa associação é tardia, forçada e ressignificada. Desta forma podemos dizer que o reino de Israel era um local de adoração do deus El e não só dele, sendo uma região politeísta, podendo ter culto monolátricos ou polilátricos. O entendimento de uma monolatria e monoteísmo é tardio e vêm após o exílio babilônico.

O Reino de Israel é invadido por Nabucodonosor II, que escraviza as castas mais ricas de Israel e Judá, deixando apenas os mais pobres na região de Canaã. Entretanto, após a conquista da Babilônia pelo Império Persa, liberta o povo hebreu, que volta a sua região, mas não sem antes terem sido influenciados fortemente pela religiosidade e cultura babilônica – principalmente do cultos as divindades babilônicas, da sua cultura como a epopeia de Gilgamesh, entre outros, inclusive muitos textos bíblicos se assemelham a textos religiosos, culturais e teatrais das culturas babilônicas – e também da cultura Persa, principalmente zoroastrista que criara o dualismo na figura de duas divindades que combatiam por toda existência, sendo uma a representação do bem supremo e outra a representação do mal supremo: Ahura-Mazda e Ariman.

Da crença Zoroastrista, os povos hebreus ainda levam o entendimento da imortalidade da alma, da vinda de um messias para libertação do seu povo, da ressureição dos mortos e de um juízo final. Mas além disso, podemos perceber também a influência babilônica (e posteriormente zoroastrista, masdeísta) na figura dos Anjos. Então percebam, que o povo que volta a Judá e a antiga Israel, volta com um pensamento totalmente diferente do que foram e reescrevem suas teologias, como já citamos, o caso de algumas epopeias, que se tornam por exemplo uma versão, no caso do dilúvio que já é visto em textos antigos escritos em cuneiforme, antes de se apresentarem como textos judaicos.

Mas, você deve estar se perguntando: “O que tudo isso tem a ver com demônios?”

Então, com essa mudança teológica importante, saindo do politeísmo para a adoração monolátrica e monoteísta de um Deus Bom, Jeová, o povo judaico (descendentes do reino de Judá) encontrou um grande problema: “Como negar a existência de outros deuses que rivalizam com o grande deus Jeová?”. Para isso encontraram a ideia da demonização dos elementos estrangeiros, desta forma veremos com o passar do tempo que Baal, filho de El, se torna Baaltzebut, ou Belzebu, o demônio Senhor das Moscas; Astarte, a grande deusa, importantíssima para a cultura babilônica, sendo a grande protetora de Nabucodonosor II e associada a Vênus, a estrela da manhã/vespertina, se torna com o passar do tempo no demônio Astaroth; até mesmo Eósforo, um deus menor que abria as portas dos céus para a passagem da carruagem solar de Apolo, se torna via latinização Lúcifer, que só é interpretado como um “anjo caído” ou o Diabo, 400-500 anos após o nascimento de Jesus Cristo.

Quando pegamos os nomes de demônios e comparamos com as religiões da Ásia menor, podemos perceber que muitos deles eram DEUSES que “caíram”, foram esquecidos no culto e substituídos pelo deus monoteísta. Porém, o próprio Javé, segundo constam em alguns estudos, seria um deus menor, um deus do deserto, vingativo e selvagem, cultuado por povos nômades árabes. Curioso quando pensamos assim, vendo como os Judeus e Árabes se entendem hoje no cenário político internacional, não é?

Esse pensamento demonológico, serviu, de certa forma, para manter viva a compreensão dessas divindades do passado. Entretanto, alguns não compreendem como deuses podem ser considerados demônios, visto que um deus supostamente deve ser BOM. Esqueçam isso, essa história de bondade só existe após a implementação do monoteísmo, antes disso todos os deuses eram bons e maus ao mesmo tempo, aí sim podemos dizer que não havia o conceito de maldade, porém um conceito de maldade isolada. Os deuses – e veja os deuses gregos – desciam a terra e tinham fúria, desejo e paixões, desposando inclusive de mortais e lhes gerando filhos, que eram considerados divinos ou semidivinos. Isso não lembra uma certa “queda de anjos” que se apaixonaram pelas mulheres filhas dos homens e nelas fizeram filhos, que são chamados de Nefilins ou Gigantes? Não eram esses caídos, entidades que ensinavam matemática, agricultura, metalurgia, astronomia e toda uma sorte de saberes para os povos? Não foram eles punidos – pela audácia de tirar da ignorância os humanos – pelo grande deus, sendo que alguns foram aprisionados em árvores, no ar e no submundo? Sua prole não foi completamente dizimada pelo grande Deus e seus emissários? Lembra também o mito de Prometeu, que ousou entregar o fogo ao ser humano, tirando-o da ignorância e foi castigado por Zeus, tendo seu fígado devorado todos os dias, pela eternidade. Zeus ainda manda pandora abrir a caixa que continha todos os males do mundo para que eles assolassem os humanos, Pandora que se casou com Epimeteu, o irmão de Prometeu. Não são muito similares?

Os demônios – na verdade divindades de outras culturas – ficaram escondidos nas escolas de mistérios, nas mitologias e na magia, sendo transmitida posteriormente para os europeus latinizados e então, para os cristianizados. Esse saber sobreviveu dentro dos grimórios e das magias cerimoniais, sendo interpretado posteriormente por bruxos e bruxas ibéricos, que por meio da influência fausto-ciprianica, mantém a chama da demonologia acesa. Contudo, os grimórios carregam um profundo viés cristão, sendo muitas vezes evocado Deus e seus anjos para o controle desses demônios, mesmo assim, trabalha-se e exige-se dos demônios sortilégios e prodígios.

Esse saber influencia o pensamento da bruxaria ibérica, que “corta” ou cria um atalho para a comunicação com esses demônios, associa o pensamento do Daemon, ou espírito/gênio tutelar dos gregos, associado com o pensamento cristão e da subversão herege da sua aplicação e influenciam as primeiras formas de macumba na terra que vem a ser o Brasil.

O povo africano, seja ele de que etnia ou cultura, sempre teve o entendimento de bem e mau, mas não associado a visão judaico-cristã (zoroastrista) de bem e mau. Aluvaiá e Exu sempre aplicam peças e criam celeumas nas pessoas, sendo que Exu cria uma confusão que resulta na morte de duas pessoas só pelo prazer de ver a briga; Ogum mata toda uma cidade, que lhe rendia culto, por ignorância que estavam em silêncio em sua homenagem e ele consumido de vaidade, acaba com todos; as grandes mães – as Ia Mi Oxorongá – enviam pragas e infortúnios a diversas cidades, para demonstrarem seus poderes etc. Vejam, as divindades eram boas e más, eram duais, eram completas.

Aqui temos que dar um salto e compreender algo: “O Pensamento Banto”.

O povo banto, que não é um só povo, mas um grande agrupamento de diversos povos e culturas que compartilham de saberes linguísticos, religiosos e culturais semelhantes, que habitavam o centro-oeste africano, na África subsaariana, tem uma compreensão interessante sobre o poder do mundo e das coisas. Associado erroneamente a uma divindade, o termo Nkisi, expressa muito além do que apenas um deus. O termo Nkisi pode ser compreendido como algo bem profundo, algo que representa um poder possuído, desta forma, tudo que possuí poder, ou Nguzo, como é chamado pelos povos bantos, é um Nkisi, sendo assim: Um deus é um Nkisi, um Antepassado divinizado pode ser um Nkisi, um Santo é um Nkisi, um feitiço é um Nkisi, um assentamento é um Nkisi, um Rio pode ser um Nkisi etc. Tudo que detém poder é considerado um Nkisi, um possuídos de Nguzo.

Desta forma, não é difícil entender, como o povo do Congo se associa ao Cristianismo, se converte (parcialmente) ao cristianismo e se usa desses elementos para suas práticas religiosas, porque afinal, o Santo e o Deus Cristão deram aos portugueses tecnologias de armas, de barcas e de navegação que os Congolenses não tinham, desta forma eles viam “poder” e o poder podia ser “absorvido”. O Deus cristão se torna Nkisi desta forma, assim como os santos e o processo de batismo era uma aquisição e nunca uma escolha que afastava o conhecimento tradicional, tanto é, que os reis do Congo (Manicongo) se batizam, mas retornam as suas práticas tradicionais por diversas vezes na história. Inclusive podemos até atribuir a “prática cristã” dos pretos-velhos a esse entendimento, sendo que o preto-velho reza para Jesus, vendo Lembadilê e cantando para Oxalá, ao mesmo tempo.

Vocês acham que seria diferente com a visão dos “demônios”? De forma alguma.

Não tardou para o Livro de São Cipriano e outras formas de transmissão de saber pela oralidade, incrementar as práticas de macumba. Afinal, os africanos ao se conectarem aos saberes indígenas, absorveram as práticas de ervas, de feitiçaria, do fumo, da fumaçada, dos encantados e assim por diante; o mesmo ocorre com a bruxaria ibérica, naturalmente herege e as práticas do catolicismo popular, como afogar Santo Antônio para conseguir um casamento.

Entretanto, no início do século XX, influenciado pelo pensamento positivista e pelo pensamento espírita, vemos as “casas de macumba” começando a adentrar um campo da sociedade de classe média e classe alta, principalmente no Rio de Janeiro, até então capital do país. Essa influência retira das práticas de macumba alguns fundamentos dados como primitivos (afinal, durante toda obra de Kardec se fala dos selvagens e como eles eram atrasados), tais como os oráculos, os transes e possessões mais agressivos, as manifestações de entidades dadas como “não civilizadas” e o sacrifício animal. As sessões de macumba eram regadas a uma “enebriação” digna dos eventos dionisíacos, onde os médiuns ao consumirem álcool e se intoxicarem com as fumaças dos fumos, abriam portas sensoriais, se entregando a um transe que muitas vezes era visto como descontrolado, permitindo a manifestação de entidades, dadas como selvagens e de difícil trato, como os Gangas. Os Gangas que posteriormente irão receber a alcunha de Exu e Pombagira.

Nessa tentativa de elitização da religião e da higienização da religião de práticas consideradas primitivas, vemos o distanciamento também do pensamento demonológico, criando assim uma dicotomia, que para alguns relembra o dualismo de Ahura-Mazda e Arimã, nas figuras de Umbanda e Quimbanda.

Aqui, em meu achismo, estou para dizer que a Quimbanda é a verdadeira Umbanda, que guardou os saberes da Macumba e não se deixou influenciar a ponto de perder a sua identidade. O pensamento banto é de absorção e nunca de negação, então a Umbanda poderia absorver os saberes espíritas, mas manter tudo que tinham antes, o que infelizmente não aconteceu. Entretanto, isso ocorre com a Quimbanda, porém como uma forma de contrapor esse sistema pasteurizado, acaba se focando a cada dia mais na sua visão demonológica, para afastar de seu seio aqueles que queiram higienizar a mesma.

Bom, com tudo aqui exposto, acho que fica evidente que essas pessoas que defendem que “Não existe o conceito de demônio na África”, “Que os africanos não entendem o mau”, “Que o demônio não pode coexistir com Exu”, etc. estão completamente enganados em suas afirmações. Na verdade, acredito que eles sejam apenas máquinas que repetem a exaustão o que seus mestres, que também não conseguem pensar adequadamente fora da castração mental que foram submetidos, falam. Eu digo isso, pois não quero acreditar – apesar de ser em alguns casos – essa uma tentativa consciente de “inferiorização” das práticas de macumba mais raiz.

Seja como for, agora com essa exposição, você pode pensar por si mesmo e ver se isso tem coerência.

 

Tata Nganga Zelawapanzu
Mestre de Quimbanda Nàgô e Quimbanda Mussurumim
Dirigente Espiritual de Umbanda da T.E.U. Chão de Jorge
Dirigente Espiritual do Templo de Quimbanda Cova de Tiriri.

 

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