Temos uma grande polêmica que envolve a questão de Orixás dentro da Umbanda, alguns dizem que existem, outros que não existem. Mas o que eu acho? Eu acho que o assunto é muito mais complexo do que uma afirmação pura e simples.

Primeiro é preciso entender o que é Orixá, para depois compreender se essa estrutura se encaixa dentro da Umbanda.

O termo Orixá é comumente utilizado para designar uma divindade de origem Iorubá, ou nagô, conforme algumas fontes. A região que chamamos de Iorubalandia compreende parte das atuais nações da Nigéria, Togo, Benin e Gana. A questão é que normalmente olhamos para o passado com os olhos do presente e não conseguimos destituir o formato atual dos países e a política do que ocorria no passado. Para começar, devemos entender que não existiam os países conforme entendemos e que mesmo que vários povos pertenciam a uma cultura similar, eles eram povos independentes, como é o caso da população da cidade-estado de Ilê-Ifé e da cidade-estado Oyó. Apesar dessas duas nações terem similaridades, de cultuarem formas parecidas de religiosidade e até mesmo dividirem origens parecidas, eram duas cidades independentes, duas “nações” distintas, que tinham seus próprios deuses e forma de culto.

Poucos Orixás eram cultuados por mais de um povo ou de forma mais universal, sendo isso geralmente destinado a Oxalá e Exu em grande maioria e em menor difusão a Ogum e Iemanjá. Claro que não encerramos completamente todos os Orixás que podemos encontrar em terras africanas, mas estamos nos detendo naqueles que conhecemos também em solo brasileiro.

O entendimento de Orixá também é diferente, visto que na África os Orixás eram cultuados conforme a localidade e a ancestralidade de um povo, desta forma, se você nascia em Oyó, cultuaria Xangô; se você nascia em Irê acreditaria e cultuaria Ogum; se nascesse as margens do rio Osun, iria cultuar Oxum e assim por diante. Claro que existem as exceções como o culto por meio de casamento, onde uma das partes acaba assumindo a religiosidade de seu consorte.

Desta forma, podemos determinar que além de divindades, os Orixás eram heróis míticos de um povo. Entretanto, no Brasil, essa estrutura se modificou, afinal, os povos escravizados nem sempre conseguiam manter acesa a chama de suas lembranças da terra natal, perdendo a conexão de suas culturas, além daqueles – seus descendentes – que nasciam no solo brasileiro, sem qualquer conexão com a África que não fosse pela ancestralidade de seus pais. Como inferir a que Orixá aquela pessoa pertencia?

Mas tudo isso que falamos, só ocorre de fato, com o Orixá, quando os povos Iorubás foram trazidos para o Brasil, já no da metade para o final do século XVIII e início do século XIX. Antes desses povos aqui aportarem havia outros povos em regime de escravidão que também trouxeram suas culturas religiosas, os povos bantos. Porém, os povos de cultura banto não compreendem seus deuses como Orixás, mas com outra estrutura, o que no coletivo chamamos de Jinkisi ou Mikisi. Entretanto, a própria ideia de Nkisi (singular de Jinkisi), é de que tudo é baseado em quantitativos energéticos, ou seja, tudo pode ser medido pelo Nguzo, palavra de origem banta que determina energia ou poder, o que alguns dizem ser similar a palavra iorubá Axé.

O banto até pode enxergar um Orixá como um Nkisi, pois este possui Nguzo, mas nem sempre um Nkisi será um Orixá, ou seja, não há como fazer a associação inversa.

Dentro da Umbanda, a estrutura banto é muito presente e já falamos sobre isso em vários artigos, vídeos e podcasts, o que eu recomendo que vocês pesquisem. Com esse tipo de padrão de pensamento religioso, podemos inferir que os povos bantos escravizados para o trabalho no Brasil, bem possivelmente, associaram seus Jinkisi com os Orixás, quando o povo Iorubá chegou em terras brasileiras, entretanto, sabendo do que eles estavam falando, em outras palavras, sincretizaram suas divindades por similaridade.

A Umbanda bebe dessa fonte e se utiliza dela, sendo assim podemos dizer que também há um sincretismo e assimilação do Orixá dentro dos terreiros e práticas de Umbanda, porém ele distancia-se em muito do Orixá de Candomblé, que por sua vez se distancia em muito do Orixá do Culto Tradicional Iorubá. Desta forma, podemos até dizer que existe sim Orixá dentro da Umbanda, mas dentro de um padrão de pensamento diferente, usando do mesmo termo, com propósitos diferentes e tal.

Você pode estar torcendo o nariz agora nesse momento e repetindo mentalmente: “Ah, mas ele está se referindo aos falangeiros!”, pois bem, sinto lhe informar, mas não, não estou falando de falangeiros, estou falando de Orixá mesmo, mas dentro dos termos da Umbanda. O Orixá na Umbanda representa uma força, um nguzo, um poder, mas não estamos falando da entidade divinizada, do ancestral mítico e da divindade Africana, porém de uma estrutura espiritual criada e assimilada que pode – ou não – fazer acesso aos mesmos domínios de poder dos Orixás Africanos, assim como diversas divindades já o fazem em diversas mitologias, ou você acha mesmo que Xangô é o único que detém domínio sobre os trovões? E Zeus, Odin e Tupã? Você acha que o único metalúrgico é Ogum? E Hefesto, onde fica nisso?

O povo de Candomblé geralmente critica essa visão acima posta, dizendo que a Umbanda não cuida de Orixá e não entende de Orixá. Saiba que o culto tradicional Iorubá pode falar a mesma coisa sobre os candomblecistas. A questão é que se usam de termos iguais para designar coisas diferentes, mas que podem se interrelacionar.

Dentro da minha prática de Umbanda os Orixás são forças manifestas, ou seja, a força da fé, das demandas, das matas, da justiça, dos ventos, das águas e das almas.  Dentro da minha Umbanda quando chamo por Xangô, não espero que o Rei de Oyó responda ao meu chamado, mas sim a força da Justiça que considero Xangô, mas ao mesmo tempo considero Tupã, considero Osíris, considero Tyr, considero outras evocações.

O mais fácil de se aceitar é justamente que o Orixá de Umbanda não é Orixá, mas um falangeiro dessa força e a explicação mais comum de usar definir falangeiro é que este ser é uma entidade que se aproxima tanto da força primordial do Orixá que com este se confunde. Oras, mas se não existe Orixá na Umbanda, como entidades de Umbanda podem acessar esses poderes dos Orixás? É simples entender isso com a Teoria dos Potes de Poder…

De fato, não se acessa o Orixá, mas o poder que ele representa. Digamos que cada Nguzo (poder) no universo está contido em um pote rotulado, desta forma a Justiça está em um pote, a Lei em outro, a paz em outro, a cura em outro, etc. Desta forma, diversas divindades acessam esse pote de poder, conforme suas atribuições, por exemplo Tyr e Xangô conseguem pegar a energia do pote da Justiça, mas Xangô também pega do pote do Trovão, o que Tyr não consegue, mas Thor e Tupã conseguem. Ogum, São Jorge, Marte e Ares conseguem acessar o poder do pote da guerra, mas São Jorge, Marte e Ares não acessa o do pote da metalurgia, entretanto Hefésto e Vulcano conseguem acessar o pote da Metalurgia, mas não tem aspectos de guerra. Conseguem compreender?

Desta forma, eu entendo que o Orixá é visto de forma deturpada como um poder PURO e ORIGINAL, porém eles são apenas mais um conjunto ou panteão de deuses que também acessam esses potes de poder, que são emanações do próprio Deus Criador, aquele deus inefável de todas as religiões. Não, não estamos falando do deus cristão, afinal Iavé é mais um deus do panteão canaanita que acesa potes de poderes e que ganhou uma relevância pelo domínio da sua religião, mas que não pode ser considerado como o Deus Inefável.

Complexo? Talvez… Por isso mesmo recomendo que vocês leiam e releiam aqui várias e várias vezes.

DOMÍNIOS, REGÊNCIAS E OS POTES DE PODER.

Pode parecer até estranho o subtítulo com “potes de poder” o compondo, mas vou explicar. A visão que tenho é de que as entidades sejam elas quais forem não são as mesmas. Existe sim um Ogum Africano, existe sim um São Jorge e hoje existe sim uma entidade que pode denominar de Ogum de Umbanda que é um misto dessas duas energias.

Não quero me aprofundar em detalhes na criação de divindades ou servidores artificiais, porém o que quero dizer é que o pensamento é poderoso e que a crença gera ou cria muitas coisas, inclusive deuses.

Mas voltando ao assunto, para mim tanto orixás, quanto santos, divindades, ou seja, que tipo de encantado for têm domínios variados e não são restritos a apenas uma quantidade limitada. Cada um terá o domínio ou domínios que melhor lhe couber, o mesmo pode ser expandido para a questão de regências.

Por exemplo, em algumas tradições Ogum rege o elemento Ar, em outras Ogum rege o elemento Fogo. Porém dentro da minha concepção ele rege os dois elementos, pois um não existe sem o outro, de certa forma. E qual o problema disso? Nenhum. Mas alguns autores teimam em criar situações fechadas e limitadas, para talvez serem mais didáticos, mas criam também aberrações como reinos minerais e cristalinos, que são composições dos quatro elementos principais segundo a tradição ocidental (ar, fogo, terra e água) ou dos cinco elementos seguindo a filosofia chinesa (Água, Madeira, Fogo, Terra, Metal) ou Indiana (Éter, Ar, Fogo, Água e Terra).

Então para mim, cada domínio atribuído a uma divindade é como se fosse um POTE, uma jarra. Dentro de cada uma das jarras vamos encontrar certos domínios que são abertos a aqueles que conseguem acessá-lo. Por exemplo, existe um pote da Fé, que tanto a entidade Oxalá, quanto a entidade Jesus Cristo poderá acessar. Esse pote contém a FORÇA, essa sim uma emanação de Deus Inefável, o criador do Universo (ou universos). Assim como tem um pote onde está a força da LEI (ordem) que será acessível para São Jorge, Ogum, Tyr, Thor, Zeus, São Miguel, Tranca-Ruas etc.

Para compreender melhor, observe a ilustração a seguir:

Figura 1

Vemos ali um pote universal ou cósmico que é a energia da Lei sendo acessada e irradiada para Ogum, São Jorge (representação de um dos falangeiros da Linha de São Jorge) e Thor, o deus nórdico do trovão. Assim como vemos a energia da fé sendo irradiada para Oxalá e para Jesus Cristo.

Eles são avatares ou representações dessas energias que não tem consciência, não tem ego, não tem forma e não tem individualidade. Provavelmente essas são as emanações divinas do criador e podem ser infinitas em quantidades, variedades e tipos.

Mas não é obrigatório acessar um só pote ou os mesmos potes, ou seja, apesar de Jesus e Oxalá conseguirem acessar o pote da Fé, Jesus a meu ver também acessa o pote do Amor e do Perdão. Porém o pote do amor também é acessado por Oxum, por Iemanjá e pela própria Virgem Maria. Mas não é acessado por Oxalá, em sua dominância original segundo as lendas africanas. Isso fica mais bem compreendido na Figura 2 dos muitos potes, onde temos Xangô acessando a força do Trovão, da Justiça e do Fogo; Thor acessando a força do Trovão; Zeus acessando a força do Trovão e da Justiça e Tupã acessando a força do Trovão e do Sol. Mas são entidades diferentes com domínios similares e que se manifestam em alguns aspectos de forma igual, mas não são os mesmos.

Figura 2

Será que consegui me fazer compreender?

No caso não conseguimos de certa forma cultuar o próprio pote de poder, mas um manifestante desta força, essa divindade que tem acesso a ela. Devemos compreender como podemos usar estas forças, em alguns casos feiticeiros e magos, conseguem adentrar as camadas mais profundas da malha da criação e acessam essas forças sem intermediários, promovendo verdadeiras revoluções para o bem e o mal do ser. Outros tantos acabaram se corrompendo, pois, a força é neutra, cega e não tem ética, nós é que damos a ela a condição que ela tomará. A própria fé quando muito exacerbada gera fanatismo, o que é prejudicial, pois nubla a mente para discernir, questionar e passamos a virar robôs (autômatos) guiados por uma verdade limitada ou relativa.

Espero que isso tenha ajudado a todos a aliviar um pouco os tormentos causados por esse tal de sincretismo. Lembrando que essa é minha visão, o que não é uma verdade absoluta.

PENSAMENTO BANTO E ANCESTRALIDADE

Já expliquei em diversos artigos sobre a ancestralidade banto e o pensamento destes, aqui trarei apenas uma visão lúdica da criação e do entendimento de como as coisas se complementam.

Nzambi é considerado o Deus Criador, porém inefável e afastado da humanidade. Ele é a força sustentadora de toda a criação, mas é incompreensível para nosso pensamento, pois existe antes de tudo existir. Nzambi dentro muitas de suas atribuições cria os Jinkisi (plural de Nkisi) e os primeiros homens, estes são chamados de Antepassados. Os Jinkisi são as divindades, mas não apenas as divindades, sendo muito mais que isso, porém, aqui para este exemplo serão tratadas simplificadamente como divindades ou deuses. Esses deuses conseguem comungar diretamente com Nzambi, pois dele são parte e dele são emanações. Os Antepassados conseguem comungar diretamente com os Jinkisi, porém os descendentes dos Antepassados, a humanidade, não se sentem confortáveis ou aptos a esse tipo de contato, logo eles pedem o intermédio dos grandes antepassados para que eles comunguem diretamente com os Jinkisi. Desta forma, acessamos uma ancestralidade conjunta para essa manifestação. Desta forma teremos dentro do ponto de vista espiritual na cosmogonia banto Nzambi, Nkisi, Antepassados, Ancestrais e nós.

Claro, que existem variações dessa interpretação e deixo livre para o seu pensamento, mas cabe muito bem dentro de tudo que aprendi.

%d blogueiros gostam disto: