Existe um incômodo crescente nos meios digitais contra o sincretismo, entretanto precisamos entender a natureza do processo sincrético de forma racional, sem nos deter em paixões ou desejos. O sincretismo é uma realidade e está presente em todo território religioso nacional, entretanto, o sincretismo não é exclusivo dos cultos afro-diaspóricos e tampouco foi criado por este.

O sincretismo religioso é o processo de combinação ou aproximação de várias práticas religiosas ou até crenças populares em uma única forma de pensar. Ela ocorre por todas as religiões na história humana. Encontramos, por exemplo, sincretismo entre o xintoísmo – religião nacional e original japonesa – e o budismo – religião que foi criada por Sidarta Gautama (Nepalense/Indiano, depende da fonte). Há quem diga que no Japão todos nascem xintoístas, mas morrem budistas. O movimento religioso neopagão também é sincrético, onde combinam-se várias “divindades” de diversos panteões em uma só estrutura de pensamento, podendo uma pessoa evocar Zeus como o deus maior de sua sessão e na sequência chamar por Amateratsu, sem qualquer problema ou preocupação de agradar a Brigite, dos celtas.

O próprio cristianismo surge de uma dissidência do pensamento judaico e se manifesta em Roma, usando da figura de um Jesus Cristo similar com o Greco-Romano Apolo. A própria associação de feriados culturais tidos como pagãos pelos cristãos é um processo sincrético. O antes dia de comemoração de Solis Invictus se torna o dia de nascimento de Cristo, a Páscoa se torna o dia de sua morte e ressureição etc. Tudo isso é processo sincrético. O próprio pensamento de Bem e Mal e grande parte do que hoje entendemos como cultura judaico-cristã, na verdade advém de uma cultura persa por meio do Zoroastrismo.

Mas, o que incomoda de fato as pessoas é o sincretismo das religiões Afro-diaspóricas com o Catolicismo. Não podem ver um Santo em um altar de macumba que exclamam a todos os ventos como aquilo é um apagamento histórico da cultura daquele povo, sem ao menos dar tempo de pensar sobre o processo sincrético.

O primeiro pensamento que se tem é que o sincretismo entre santos e orixás se dava para que os africanos trazidos como mão de obra escravizada pudessem cultuar seus santos. Temos até histórias divertidas como a do Santo do Pau Oco, entretanto, vamos pensar melhor? Em uma linha do tempo sabemos que os primeiros africanos trazidos para o continente americano como escravos foram os povos das regiões do Reino do Congo e Reino do Dongo, ou seja, uma região subsaariana, ao sul do continente africano, onde predominava a cultura banto. Apesar desta região ter uma multiplicidade cultural e de povos, os estudiosos os enquadram como um ramo cultural pela aproximação linguística, religiosa e até mesmo cultural que eles possuem. Chamam-nos genericamente de povos bantos.

Os primeiros africanos escravizados chegam ao brasil no início do século XVI, por volta de 1535. Há quem diga que os povos bantos representavam 75% de todos os africanos trazidos para o Brasil.

Então, esses africanos de origem banto escravizados encontraram os primeiros escravos brasileiros, que foram os povos indígenas. Desta forma, podemos assumir que dentro das senzalas (que nem tinha esse nome provavelmente, visto que senzala é de origem linguística banto, do ramo da língua Quimbundo: sa’nzala ‘povoação) e com certeza fizeram trocas de saberes e de culturas, inclusive religiosa, o que já demonstra uma forma de sincretismo natural ocorrendo, sem passar pelos olhos do intelectual. Mas a história que todos contam – usando o conto do Santo do Pau Oco – é que os africanos esculpiam santos de madeiras e colocavam pedras na sua base, dando a entender aos senhores de escravos que eles estavam cultuando os santos católicos, quando na verdade eles cultuavam as pedras que eram seus orixás.

Aqui já temos diversos problemas:

  1. O ato de esculpir ídolos em madeira é uma característica dos povos bantos, que esculpiam a imagem de seus “deuses”.
  2. A forma de culto dos santos ser algo para afastar a ideia de heresia e acalmar seus patrões.
  3. A palavra Orixá usada nessas histórias, que nem sequer existia ou era conhecida em solo brasileiro, afinal o povo banto não cultua Orixá!

Com esses tópicos em mente vamos pensar mais profundamente. O Banto dá ao nome de um poder, seja ele um deus, um espírito, um ser humano poderoso, uma tecnologia, um fetiche etc., de Nkisi, termo que aportuguesado é chamado de Inquice. Esse termo é erroneamente associado com a definição de Orixá, tanto que se você procurar no dicionário Michaelis, você encontrará no verbete Nkisi: “Orixá, nos candomblés de Angola e Congo”. Mas, como assim você define algo pela cultura religiosa de um outro povo? Não é complicado fazer esse tipo de associação? Se eu não tivesse a ideia de orixá eu iria dizer que o Inquice é na verdade o Santo nos candomblés Angola e Congo? Ou poderia até mesmo dizer que eram os deuses?

Mas nada disso exprime a totalidade do que é um Nkisi e esse é o problema do pensamento raso e da mitologia comparada, quando na boca de quem não consegue usar de raciocínio sem amarras e paixões, que podem colocar todo um significado a perder. Todos os linguistas defendem que o processo de liberdade de pensamento de um povo começa pela sua forma de se expressar, pela sua linguagem e pelo pensamento de como ela entende a sua realidade, que não é única.

A primeira forma de subjugação de um povo é por meio da sua cultura. Quando tiramos da sua boca a sua língua nativa, tiramos deles grandes significados que podem só existir na sua forma de se expressar.

Então, podemos dizer que os Nkisi podem ser similares aos Orixás, para os candomblés Angola e Congo, mas o Nkisi não nasce no candomblé, nasce nas terras bantas e lá o entendimento é que o termo Nkisi pode se referir a um deus, a um espírito da natureza, a um espírito divinizado, a um amuleto ou fetiche mágico, a um método de cura, a um indumentário e uma máscara e até mesmo a alguns humanos que ascenderam socialmente com grande poder.

Oras, então podemos nos aproximar da ideia de que Nkisi na verdade é a representação de alguém ou algo poderoso, dotado de poderes sobrenaturais que os diferencia em muito da população regular. Aliando isso ao pensamento banto de que é possível absorver as culturas dentro da sua própria cultura, começamos a ver o movimento sincrético dando seus primeiros passos já na África. Quando o primeiro português – Diogo Cão – chega ao Rio Congo e se encontra com o Manikongo do Reino do Congo, Nzinga a Nkuwu em 1483, começamos a ver uma associação do pensamento católico ao pensamento congolês. Chegando ao Manikongo (Rei do Congo) a pedir para ser batizado como João I.

Nzinga a Nkuwu não era um simplório, era um rei. Seu pensamento era político e ele sabia que a tecnologia trazida pelos portugueses era algo novo e ele associou isso ao poderio que eles possuíam pela sua religião, desta forma se batizar e associar a essa divindade lhe traria também o poder dessa divindade, sem ele ter que abdicar do poder que ele já possuía. Então podemos assumir que o hábito de assimilação de conteúdos de outras culturas era uma prática natural dos povos bantos. Vejam que nada foi imposto a força, inclusive existem relatos de que vários santos católicos eram cultuados em terras africanas após os contatos e antes da violência do processo escravagista e de uma suposta imposição da cultura religiosa (que de fato ocorreu, como em toda história da cristandade). Então, podemos assumir que alguns africanos trazidos para o Brasil já possuíam esse caráter sincrético ou até mesmo o viés de culto aos santos católicos, alguns podendo até mesmo terem sido batizados em terras africanas? Pode ser, mas não temos dados suficientes para afirmar, apenas para sugerir.

Então aqui nós acabamos por entender o tópico 1 da lista anterior, onde o ato de esculpir divindades era comum e isso até hoje acontece quando se fazem os assentamentos com tabatinga, imagens de orixás (hoje de gesso e não mais de madeira) e afins. Também conseguimos explicar que a imposição houve, mas nem sempre ela foi a grande responsável pela “obliteração” (que não ocorreu, pois, essas divindades persistem até hoje) dos cultos africanos em solo brasileiro. Tópico 2 também abordado então.

Em várias literaturas, mas em especial no livro O Diabo e a Terra de Santa Cruz”, da Laura de Mello e Souza, podemos presenciar vários relatos dos processos pagãos em terras brasileiras, principalmente da feitiçaria africana e brasileira (que alguns autores chamam de feitiçaria cabocla ou creoula). Em vários relatos podemos perceber que os africanos tinham suas festas e que muitos senhores de fazendas achavam prudente por deixar eles terem, dançarem e se divertirem para que o trabalho rendesse. Além disso, muitos deles faziam uso dos conhecimentos medicinais e mágicos desses povos africanos chamados de “primitivos” em suas próprias vidas. Entretanto, vemos que o fantasma da Inquisição parece que perdura na mente de todos em todos os tempos. Há claro nessa época um processo inquisitorial (que muitos erroneamente dizem que ocorreu na idade média, veja como as pessoas não procuram se aprofundar nos assuntos, mas sobre isso falamos em outro artigo). Entretanto devemos entender que não havia tribunais do santo ofício (Inquisição) no Brasil. Os casos supostamente aceitos para esse tribunal deveriam ser submetidos a julgamento em Portugal, desta forma podemos dizer que isso demorava muito.

Em um país como o Brasil, em sua dimensão continental, no século XVI até o século XVIII, nós não encontraríamos grandes metrópoles e a maior parte da população escravizada se encontrava no interior. Vamos pensar que nem uma criança primária? No Brasil era tudo mato! As fazendas eram distantes umas das outras, tão distantes que nem sequer párocos havia, quanto mais oficiais da santa Sé. Então, um caso de “heresia” para a inquisição demorava muito tempo para ser conhecido, comunicado e até julgado. Além disso a mão de obra escrava era algo custoso, tinha preço atrelado, logo não podemos aceitar a ideia de que um senhor de fazenda/engenho/escravos, iria entregar um “bem” dele de graça para a igreja, sem que essa descobrisse por conta própria algum caso de heresia ou profanação. Esses homens pensavam no lucro, lembrem-se disso…

Pode ser que alguns sofreram imposição dos brancos mais radicais e fanáticos pela religião? É bem possível, mas a gente tem que lembrar que essas pessoas não eram tão intelectualmente formadas e muitos deles nem sabiam o que ocorria nas missas (quando havia igreja por perto para fazê-las). A Igreja era muito diferente do que temos hoje e a liturgia era voltada sempre para Deus e em latim. Quantos desses senhores de fazendo vocês acham que sabiam latim? E da população comum?

Agora quero abordar a questão do Orixá, afinal este é um termo usado pelos povos Iorubás que só chegaram ao Brasil em meados do século XVIII e começo do século XIX, já no final do processo de escravização. Como podemos falar que aqueles homens e mulheres que foram trazidos do século XVI até o século XVIII conheciam os Orixás se isso não fazia parte de suas concepções religiosas? Oras, eles aprenderam posteriormente com a chegada dos Iorubás em terras brasileiras, pela associação, ou seja, sincretismo. Em sua essência, no começo eles cultuavam seus Nkisi e só depois os associaram aos Orixás e isso se deve não só ao processo de assimilação cultural e da imposição Iorubá de sua crença (que é forte), mas também pela perda da memória das terras originais. Nesse intervalo do século XVI e século XVIII os povos bantos trazidos para cá já estavam misturados com outros povos e já haviam gerado descendentes puramente brasileiros, que não tiveram nunca contato com a África e essa memória pode ter se fragmentado, sendo guardada só algumas partes por meio do processo da oralidade. Quando da chegada de novos povos africanos, eles tentam exprimir e resgatar a sua religiosidade através deles, afinal eles estavam vindo diretamente da África. A questão de serem povos diferentes, poderia ser sentida pelos primeiros que foram trazidos, mas para os que aqui nasceram, não havia muito método de comparação, visto que a realidade deles não era de expatriados, mas de pessoas nativas (afinal nasceram aqui) e que foram escravizadas já em útero. O seu universo era muito restrito e eles só possuíam a memória passada pelos seus ancestrais (oralmente) que pode ter se corrompido e fragmentado com o passar do tempo.

Tudo isso que eu abordei aqui é para demonstrar como é frágil esse pensamento de “imposição” apenas. Não que não tenha havido imposição e violência, isso teve e muito, mas não é só isso que explica o processo sincrético. Muitos desses novos brasileiros mestiços – como 99% da população do Brasil é – tinha a vivência dessa cultura também mestiça, onde santos e divindades africana (Nkisi, Orixá e Voduns) conviviam. Muitos deles tinham real devoção a santidade católica, no começo entendendo que ele era uma força a mais no seu culto e posteriormente tomando o lugar primário no culto.

Hoje vemos a necessidade de um resgate em cima dessas figuras e das divindades que são colocadas em um altar, quase como se tivéssemos despertado de um coma profundo onde percebemos que estamos fazendo tudo errado, entretanto a pergunta é: Estamos mesmo? Será que os antepassados não sabiam o que estavam fazendo? Isso, pelo exposto aqui, não é um pensamento associativo para o benefício pessoal de cada um?

Devemos entender que a Umbanda, a Quimbanda e os Candomblés não são africanos! Eles são religiões brasileiras que tiveram matrizes africanas (e não só africanas) e que desta forma construíram um novo caldeirão cultural e religioso na terra da diáspora. Vamos pensar agora religiosamente, o candomblé sempre funcionou para seus praticantes, correto? Independente se o que tinha lá era Santo ou Orixá, correto? Então por que há tantas críticas hoje a imagens e até a menção de uma influência católica dentro das práticas de cultura e religião brasileira? A quem isso serve?

É muito bom repensar as coisas e resgatar o entendimento das coisas, entretanto a própria história da religião brasileira, principalmente o Candomblé, passa por uma fase em que tentou se apagar completamente a visão da influência Banto, onde era dito que eles eram inferiores (e não foi dito por europeus). Hoje entendemos como a cultura banto nos influenciou muito mais que a cultura Iorubá, tanto que muitas palavras do nosso português e até mesmo a entonação e o acento de algumas expressões são de origens do Quimbundo e Quicongo, línguas bantas trazidas com as pessoas escravizadas.  Entretanto não podemos simplesmente ignorar as outras influências, afinal o Brasil não é um país africano, é um país multicultural, foi formado assim e precisa ser entendido desta forma. A influência indígena também é extremamente presente, principalmente na culinária e na língua portuguesa brasileira, visto que até meados de 1758 a língua “oficial” do Brasil não era o português, mas a língua geral, que era uma mistura do português com o tupi e expressões do Quimbundo e Quicongo. Isso só muda com a proibição dada pelo Marquês de Pombal ao uso do Tupi e a instituição do português como língua única. Mas, uma lei não muda o jeito das pessoas se comunicarem do dia para noite, isso levou tempo e até no começo do século XX ainda encontrávamos pessoas que se comunicavam na língua comum ou Nheengatu, como é conhecida na região amazônica.

A influência ibérica também foi importante, mas quando falamos nisso as pessoas já se fecham num preconceito contra tudo que é europeu. Entendemos a questão do eurocentrismo, mas nos fechar aos fatos é mantermo-nos ignorantes sobretudo, então precisamos encarar os fatos e compreendê-los sem paixões, para podermos construir de fato essa identificação que só nós possuímos no mundo. Quando falamos da influência ibérica estamos nos referido as camadas mais pobres e os egressos (expulsos) das terras portuguesas, que geralmente eram enviados para cá, sob acusação de heresia, profanação e bruxaria. Oras, se eles eram os “profanos” como eles poderiam cultuar o que a igreja prega? De fato, não cultuavam, pois muitos desses camponeses tinham seus próprios métodos e tradições religiosas, que sincreticamente, foram associados ao cristianismo. Mas seu cristianismo é um cristianismo popular, uma visão do povo diante da divindade e da religião, tanto é, que duvido que o Papa abençoe e permita que você pegue um Santo Antônio e vire-o de ponta cabeça em um copo de água se ele não lhe trouxer um marido. Essas práticas de catolicismo popular, misturada com as práticas da bruxaria ibérica e a influência enorme do livro de São Cipriano, vai acabar por definir a Macumba do século XIX e início do século XX que resultaram no que conhecemos hoje como Umbanda e Quimbanda.

Mas para concluir esse artigo que já está bem extenso, quero deixar aqui claro que não defendo um puritanismo, mas também não defendo a mistura desmedida de qualquer coisa na religião. O que proponho é um pensamento crítico, sem interferências pessoais, para compreensão do processo sincrético, vendo que este não é um vilão, mas uma característica da nossa religiosidade. Se você ainda é daqueles fanáticos que acredita que uma religião traz a verdade única e que ela é promulgada por uma divindade superior, que denota que você é melhor do que todos os outros de outras religiões, acho que você não vai gostar desse texto, mas se você tem um pensamento minimamente crítico e racional irá entender – sem afetar sua fé – que o processo da macumba brasileira se forjou mediante o contato das muitas culturas que compõe o povo e que apesar do discurso contrário a mistura dos povos e etnias que muitos propõe de forma vela, a gente não pode negar que somos resultantes de tudo isso, que não existe purismo no nosso DNA, que não existe purismo na religião, que não existe purismo na cultura. Se estamos inseridos nesse mundo, não podemos ser cerceados de vivenciar aquilo que é nosso e essa espiritualidade, essa forma de expressão religiosa, é pertencente a todos os brasileiros, seja nos terreiros, nas igrejas, nos templos ou até mesmo nas festas populares.

Eu sigo o seguinte pensamento sempre: “Os ancestrais não eram ignorantes, eles sabiam o que faziam. Como sigo uma religião que preza pela ancestralidade, eu confio na ancestralidade para me guiar”. Muito fico chocado quando alguém chega com um discurso purista e diz: “Os ancestrais estavam errados”. Isso demonstra que só nós agora somos iluminados? Não, sabemos que não… Mas existe uma agenda, que interessa a alguém, existe uma cisão que interessa a alguém e a gente está dando margem a essa cisão. Vamos ser um pouco mais sábios e pensar com nossas cabeças? Saravá!

Tata Nganga Zelawapanzu
Mestre de Quimbanda Nagô e Quimbanda Mussurumim
Sacerdote da Tenda Espírita de Umbanda Chão de Jorge
Dirigente do Templo de Quimbanda Cova de Tiriri

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