A confusão maior causada pela promulgação da Pombagira Hécate foi tamanha que até os próprios magos do caos se sentiram incomodados com a comparativa.

Vi muita gente exclamando que uma coisa não tem nada a ver com a outra e tantas outras questionando sobre o absurdo em associar tais entidades. Mas será mesmo que essa associação é tão absurda?

Primeiro devemos entender o que é Hécate e o que é Pombagira, para posteriormente entrarmos em uma seara de julgamentos teológicos sobre a situação em si.

A DEUSA DAS ENCRUZILHADAS E DA MAGIA

Hécate, segundo o artigo “Hécate, deusa da magia: representação em Macbeth” de Thais Rocha Carvalho¹ nos traz o retrato claro da desassociação hodierna da deusa helênica em outras temáticas pagãs e literárias.

O que devemos compreender primeiramente é o contexto do paganismo em nossa sociedade. Pagão seria todo aquele que vive do campo ou no campo, sendo assim, teriam uma vida bucólica, longe das grandes urbanizações. Contudo, esse termo atualmente é usado para designar aqueles que cultuam ou tem práticas não condizentes com o as grandes religiões abraâmicas, sendo elas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo.

Ainda, devemos ter em mente que analisar um contexto religioso desassociado de sua sociedade e de seus cultuadores, muitas vezes isolando a divindade ou culto em uma bolha, é tremendamente precário para compreensão sobre as divindades e a própria religião.

Naquilo que hoje convencionamos em chamar de Grécia, existem os povos helênicos, contudo estes mesmos povos estavam espalhados além da própria região grega atual, se expandindo para o oriente médio, nordeste africano e por todo mediterrâneo de certa forma.

Segundo Thais Rocha Carvalho:

“Hécate é especialmente peculiar. Por toda Antiguidade, ela foi uma deusa de grande diversidade, originalmente multifacetada, mas cujas atribuições sombrias ganham força e acabam por prevalecer em representações posteriores”

Aqui começamos a entender que o helenismo é uma conceituação muito plural e que não é entendida por todos os estudiosos. Sendo assim, os próprios povos helênicos acabaram por absorver outras culturas e outras divindades dentro de seus panteões desenvolvendo assim sua cosmogonia, cosmologia e teogonia.

Originalmente, a deusa Hécate não ocupava um espaço dentro do panteão helênico, sendo que sua possível origem se dá ao oeste da Ásia Menor, em uma região chamada Cária (JOHNSTON, 1990; 1999). A Ásia Menor é onde hoje podemos encontrar o país chamado Turquia, sendo a região banhada pelo Mar Negro, Mar Mediterrâneo e Mar Egeu.

Em seu conceito original, segundo a arqueologia, Hécate desempenhava um papel de deusa urbana, uma deusa mãe que promovia benfeitorias e dava benesses aos seus cultuadores, originários da cidade de Cária.

Hoje, entretanto, ao exclamarmos o nome Hécate, associamos imediatamente a uma deusa sombria, punitiva, com aspectos noturnos. Essa associação imediata também é feita com todos os praticantes de feitiçaria, bruxaria e magia, sendo assim Hécate passa de uma mãe benfeitora para uma deusa sombria da magia.

Segundo o Artigo de Thais Rocha Carvalho, essa associação se dá devido ao grande poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare em sua obra Macbeth.

Hécate é citada na Teogonia de Hesíodo e no Hino Homérico a Deméter, obras do período arcaico helênico, entre 750 A.C e 600 A.C. aproximadamente. Hécate aparece promovendo mudanças climáticas no Hino Homérico a Deméter e assim sendo usada para explicar as estações do ano. Contudo, é muito importante ressaltar que nesta obra Hécate desempenha o papel de testemunha do rapto de Perséfone, filha de Deméter, por Hades o Deus do submundo.

Posteriormente, Hécate retorna a cena nesta obra para saudar Perséfone, quando esta se torna a nova rainha do submundo, recebendo assim desta regente um papel de auxiliar nas idas e vindas de Perséfone entre o Hades e o mundo dos Deuses e Mortais².

Hesíodo por outro lado descreve Hécate como uma deusa benfeitora de toda humanidade, atrelando a ela mais de sua característica original. Hécate para Hesíodo é tão importante que até o próprio Zeus, Rei dos Deuses, reconhece sua função como aquela que transita entre antigos e novos deuses, além de intermediar entre deuses e mortais.

No período Clássico, Hécate por sua capacidade de trânsito entre os mundos, principalmente entre o mundo dos mortos e dos vivos, acaba sendo associada aos fantasmas e almas dos mortos. Menelau, um rei de Esparta (antigamente Lacedemónia), pede para que a deusa lhe envie aparições. Aparições são manifestações dos espíritos dos mortos. Justamente essa conexão com os mortos, pressupõe Thais Rocha Carvalho, é o que dá a Hécate a associação com a magia, sendo representada como a deusa da Magia, protetora das feiticeiras.

A teurgia helênica tinha como p ilar central a comunicação com os mortos, então toda magia só era funcional por meio da evocação dos mortos e de seus poderes.

Libações nos túmulos para a paziguar fantasmas podiam às vezes ser suplementadas com ofertas mensais de “ceias” (δεῖπνα), depositadas em noites de lua nova fora das cidades, em locais onde três estradas se cruzassem (τρίοδοι). Essas ceias eram consagradas não apenas aos fantasmas cujas iras precisavam  ser  apaziguadas,  mas  também  a  sua  senhora,  a  deusa  Hécate,  já  que  os  vivos esperavam que ela ajudasse a conter esses fantasmas. A relação estreita que Hécate tinha com os fantasmas foi a principal razão para ela ter se tornado a divindade mais importante aos γόητες³  e outros praticantes de magia na antiguidade (…).

Hécate adentra então o período Helenístico com a sua função atualmente conhecida como deusa da magia de forma consistente. Sendo costumeiramente chamada para as feitiçaria, as evocações de espíritos, para a abertura do plano dos mortos e a evocação dos mortos. Medeia, uma das mais famosas feiticeiras helênicas, tem associação direta com Hécate, sendo que esta feiticeira haveria recebido todo conhecimento a respeito de drogas, venenos e plantas diretamente da deusa Hécate.

Por fim, é importante notar que Hécate é uma das deusas cujo nome é mais invocado nos Papiros mágicos. Ao misturar rituais e tradições gregas, egípcias e até mesmo judaicas, esses papiros retratam, praticamente, uma nova religião, em cujas práticas os deuses e as deusas do submundo assumem papel proeminente – o que não era novidade para a religião egípcia – mas “é uma característica do sincretismo helenístico dos papiros mágicos gregos” (BETZ, 1996, p. xlvi).

Neste período a imagem da deusa Hécate era associada também a outras divindades, muitas vezes se misturando a ela (sincretismo e associação), nas figuras das deusas Perséfone, Artémis, Selene e outras mais.

Essas características de Hécate como uma deusa de feitiçaria, sem o julgamento maniqueísta da visão hodierna, começa a se perder após a obra shakespeareana Macbeath, onde a Deusa é evidenciada como uma divindade oculta, soturna e da noite.

A representação de Hécate que temos é de uma deusa tríplice, porém as representações mais antigas mostram uma só face desta divindade. A sua manifestação como deusa tríplice só ocorre tardiamente após o século V A.C.

Hécate em sua concepção atual é associada como uma deusa sombria, trifacetada, com os domínios sobre os encantamentos, os caminhos e as encruzilhadas.

MPAMBU NJILA

Quando falamos sobre Pombagira não compreendemos a sua real concepção e a abrangência dessa estrutura típica da Quimbanda Brasileira. Pombagira dentro da teologia de Quimbanda é vista como a contraparte feminina de Exu, sendo muitas vezes chamada de Exu-Mulher.

Contudo, o termo Pombagira4 deriva do nome do Inquice “Mpambu Njila”, que dentro da cultura banto é tido como o Senhor dos Caminhos. Este é um Inquice de inclinação masculina, sendo muitas vezes representado com um falo, contrariando a visão que temos da Pombagira sempre feminina e associada aos mistérios da mulher.

A associação com o Orixá Exu pode ser até imediata, mas é premeditada. Dentro da cultura banto temos diversas divindades que ocupam papéis similares, mas não iguais, onde podemos destacar o Aluvaiá, o Apavenã, Mavango5 etc.

Mpambu Njila ou Pambu Njila é a divindade ligada diretamente aos caminhos, as comunicações, as bifurcações e encruzilhadas.

As encruzilhadas para os povos bantos e por consequência para os praticantes de vertentes de Macumba, Quimbanda e Umbanda no Brasil, possui um sentido mágico extremo. A Encruzilhada é onde os pactos e acertos são feitos, as entregas são oferecidas, onde o mundo dos mortos e vivos colidem em harmonia.

A figura do Inquice Mpambu Njila só posteriormente se transforma na Pombogira, Exu-Mulher, a princípio apenas com o nome de Pombagira ou como vermos em alguns textos mais antigos: Exu Pombagira, a mulher de sete exus.

Essa associação de um orixá masculino sendo transformado em uma entidade feminina não é bem explicada, mas acredita-se que se associou pela transliteração do termo Mpambu Njila para o português, onde se tornaria Pombagira e por possuir radical feminino em seu nome, daria a ideia de se tratar de uma mulher.

Esse é apenas um campo de especulações e infelizmente carecemos de fontes para uma afirmação mais positiva.

Entretanto, seja como for, as entidades femininas que caminhavam nos campos dos Ngangas, Tatas e Mametos, se apropriaram do termo Pombagira para a designação de sua força motriz. Essas entidades ganhariam uma nova roupagem e um aprofundamento após a dissociação de Exu Pombagira para uma Linha ou Falange de Pombagiras, encabeçada pela popularidade de Maria Padilha.

Após essa entrada de Maria Padilha no mundo mitológico e teológico das macumbas, podemos ver a profusão de novas trabalhadoras manifestando suas individualidades, dando espaço para: Rainha da 7 Encruzilhas, Dama da Noite, Maria Mulambo, Maria Farrapo, Pombagira Cacarucaia, Pombagira da Figueira e tantas outras.

Para aprofundamento deste eu recomendo o bom livro de Verónica Rivas e Humberto Maggi: “Rainhas da Quimbanda”. Tivemos a grata satisfação de entrevistar os autores em nosso podcast Papo na Encruza 106.

QUANDO HÉCATE SE TORNOU POMBAGIRA?

Para responder à pergunta do enunciado, podemos afirmar que NUNCA! Essa é uma associação livre feita por uma sacerdotisa que não condiz com a realidade mitológica e tampouco teológica da Umbanda e da Quimbanda.

Podemos dizer que a confusão que acontece nessa vertente6 – e não exclusivamente nela – é mais pelos domínios em que ambas atuam. A entidade Pombagira, herdando as características de Mpambu Njila possui domínios e autoridade sobre a magia, os caminhos, a comunicação e as encruzilhadas, da mesma forma que a deusa Hécate, dá margem a essa associação superficial e perigosa.

Não existe Pombagira-Hécate ou Hécate-Pombagira, tampouco da divindade se associa a essa estrutura teológica de bases puramente brasileiras. Hécate faz parte de outro panteão, mas essa livre associação muitas vezes é reforçada pela visão precária do que é ser pagão ou neopagão em tempos atuais, onde em práticas mágicas como a Wicca7, você é encorajado a trabalhar com diversos panteões, sendo que muitas vezes se misturam figuras de panteões diferentes com a premissa de representarem forças similares e por assim ser, podendo dizer que são a mesma entidade com outra roupagem.

Mas isso não é só culpa dessa NeoUmbanda, sendo que isto já era promulgado em meios ocultistas, principalmente de pessoas ligadas a Kabalah Hermética e ao Hermetismo como um todo de que as divindades eram simples representações de outras, em uma mitologia comparada, que superficialmente pode fazer sentido, mas que dentro das práticas de terreiro não tem fundamento.

Um meme brincando sobre o Exu Cernnunos

Nesta seara podemos ver figuras proeminentes exaltando a associação de Exu Tranca-Ruas com o deus celta de aspecto cornífero Cernnunos, a ponto de o ocultista citar que o Exu se manifestou para ele dizendo ser o próprio deus gamado. Não faz sentido algum, dentro da teologia, onde Tranca-Ruas é bem elaborado, tem história, contexto e é um trabalhador da Quimbanda. Este mesmo ocultista já havia afirmado que Exu Caveria era o mesmo que o Lwa Baron Samedi, senhor dos cemitérios do Vodu e do Hoodoo.

Então, a crítica a sacerdotisa, que coleciona polêmicas em meio ao cenário religioso afro-brasileiro é procedente, mas devemos perceber que não foi ela que inventou tal situação, só se apropriando desta para gerar um novo patamar de especulações (e problemas).

Existe a associação das forças por comparação aos domínios e suas áreas de atividade? De certa forma existe, mas uma coisa nada tem a ver com a outra em bases teológicas, inclusive gerando conflitos tremendos dentro do ponto de vista espiritual quando se praticam esses rituais e cultos sem fundamentação.

A crítica é válida, mas a responsabilidade é nossa de discernir o que nos é empurrado forçosamente pelas redes sociais.

A polêmica foi tão grande que a sacerdotisa ganhou uma visibilidade imensa, devido ao “hate” dos outros, mas ainda assim criando mecanismos para que o algoritmo das redes sociais a coloquem como assunto relevante, enquanto as páginas sérias, que procuram estudar além do aspecto superficial das coisas, são jogadas aos oblívios da memória virtual.

Em outras palavras, por meio de sua manifestação de ódio e inconformidade, a sacerdotisa se tornou famosa, relevante e agora pode absorver uma gama de novos públicos que pode não ter a capacidade de discernimento adequada para entender a quão problemática é essa associação de Hécate e Pombagira.

Ressaltamos aqui a necessidade de se divulgar os autores, influenciadores e páginas que realmente se dedicam a não falar mais do mesmo e não criar associações superficiais como caça-cliques nas redes sociais.

Saravá as Pombagiras! Kobá Kobá! Laroyê Pombagira!


¹ Leia o artigo completo em https://periodicos.ufop.br/caletroscopio/article/view/3825/2977

² Segundo a mitologia grega, Perséfone passava seis meses no submundo e seis meses entre os deuses no Olimpo.

³ JOHNSTON, 2008, p.14 / Especialistas em se comunicar, apaziguar e invocar os espíritos dos mortos.

4 Pombagira, Pombogira ou Bombogira são grafias aceitáveis para falar a respeito de uma mesma entidade, a Exu-Mulher.

5 Mavango muitas vezes é associado a um inquice dominante do barro (Senhor do Barro) ou a Mavilutango, inquice da dança e movimento.

6 Não confuda alho com bugalhos – Kali

7 Nem todo praticante de Wicca participa dessa salada de fruta mística.


 

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