Esses dias uma grande comoção tomou as redes sociais devido a viralização de um assentamento que fiz, de uma preta-velha de Umbanda, Vovó Maria Redonda. Entre palavras desprovidas de educação e outras desprovidas de raciocínio, muito foi dito e acho que é necessário esclarecer algumas coisas.
A Umbanda desde 1908 passa por transformações para que ela fosse aceita dentro da sociedade de classe-média e classe-média-alta, para não falar de pessoas ricas também. A Umbanda é o resultado de diversas práticas religiosas pessoais, que com o passar do tempo e pela influência da culturas fundadoras deste país, começa a ganhar um corpo mais fundamentado, entretanto elas nascem de Calundus que são práticas pessoais (e muitas vezes individuais) de como se entende a religiosidade, o ocultismo e a feitiçaria. Desta forma, nunca houve um calundu igual ao outro e o mesmo vale para uma de suas netas ou bisnetas, a Umbanda.
A Umbanda antes de 1908 já existia como culto e prática, talvez não com essa alcunha, muitas vezes sendo chamado de um nome genérico de Macumba. Entretanto a Macumba também nunca foi algo igual, podendo haver dois terreiros em um mesmo bairro que são completamente diferentes, mas que comungam de algumas coisas similares: a influência banto-ameríndia, a feitiçaria ibérica principalmente por meio do livro de São Cipriano, o catolicismo popular, as manifestações de diversos espíritos pelo transe mediúnico, a presença das zimbas e das zuelas (pontos riscados e pontos cantados), etc. Mas como isso se dava? Em cada terreiro era diferente.
Dentre essas influências percebemos a existência da influência banto e dentro do entendimento banto vamos encontrar a figura do Nkisi. O Nkisi não é um deus ou um orixá, como muito se compara por aí. De fato, um Nkisi é uma estrutura de poder, ou seja, tudo aquilo que possui poder ou um nguzo relevante, sendo assim, uma divindade é um nkisi, mas também um feitiço, um feiticeiro, um poder, um político, um rei, um sacerdote, um rio, um fetiche, um patuá etc. Tudo é Nkisi desde que tenha poder, da mesma forma, santos podem ser Nkisi e divindades de outros povos também.
Para chegar ao poder do Nkisi existiam opções, entre elas, ir até o seu espaço sagrado como um Rio, Encruzilhada, a Mata, a Praia etc. ou criar um veículo para a manifestação desse poder, como se fosse uma morada física para esse espírito. A isso damos o nome, atualmente, de assentamento. Essa prática não é exclusiva dos povos bantos, sendo que os povos iorubás também possuem seus igbas e outras estruturas para o mesmo propósito. Além disso temos as filactérios judaicos e que depois migram para o entendimento europeu, como o vaso de bronze onde Salomão prende os 72 demônios da goécia. Se você for procurar na história humana, verá que diversas civilizações faziam o mesmo.
Desta forma determinamos que qualquer espírito pode ter um vaso ou morada de poder, um assentamento. O assentamento é um veículo físico para a manifestação no plano da matéria de uma entidade espiritual. Por meio desse assentamento o espírito se alimenta, se comunica e manipula a matéria, retirando do assentamento seu sustento e sua energia, não precisando a recorrer a processos vampirizadores com seus médiuns.
Na Umbanda, por causa da Umbanda Branca à princípio, mas de muitas outras Umbandas do início do século XX, vemos muito se perder do que havia antes na Macumba e o processo de assentamento de entidades é uma dessas perdas.
Desde que o Caboclo Rompe-Mato começou a me trazer informações de resgates culturais, religiosos e mágicos – mesmo antes da Quimbanda – ele falar sobre essas estruturas de poder que existem no que nós praticamos – e que ele reforça dizer que chamamos de Umbanda, mas não é o termo que ele mesmo usa – para entidades além dos Exus, sendo que eles seriam feitos a pedido das próprias entidades.
O Caboclo Rompe-Mato também sempre disse para analisar historicamente alguns contextos para não criarmos personagens infantilizados em nossas mentes e para amadurecermos ideias que são importantes para que não caímos nas malhas da ignorância. Ele diz que é completamente descabido imaginar que os indígenas que se manifestam como caboclos nos terreiros, mesmo os catequizados, sejam “paz e amor”, sendo que são povos guerreiros e caçadores, criados para sobreviver na natureza em meio a diversas intempéries e perigos. Ele mesmo cita sua próprio biografia, dizendo ser um Guiacuru, e que seria impossível achar que ele era o que pregam dele ao atacado dentro das Umbandas modernas.
Realmente, quando nos deparamos com os Guaicurus entendemos que eram indígenas extremamente agressivos, bélicos e movidos pela guerra. Que não havia crianças guaicurus, poucas mulheres guaicurus e quase não havia idosos guaicurus… Você deve estar se perguntando o porquê, correto? Simples, pois não se nasce guaicuru, se torna um guaicuru por meio da iniciação e da guerra. O mesmo se dá ao pensarmos em um indígena Tupinambá que se alimentava de carne humana dos seus inimigos em rituais antropofágicos. Então, o caboclo que temos no imaginário está longe dos povos originários.
O mesmo se processa com os pretos-velhos, onde muitos os acham bondosos, por sempre estarem citando Jesus e santos, mas não compreendem que esse é um processo natural dentro da cultura banto de absorver saberes e poderes, mas quando você vê alguns pontos riscados de pretos-velhos, vai perceber nuances ali que determinam o quão irascível é aquele espírito. São feiticeiros que se cobrem de um manto de inocência muitas vezes, mas que guardam extremo poder e de inocentes nada possuem. Mas as pessoas ainda associam com aquilo que elas querem associar, devido ao fato que o umbandista tem a necessidade de querer ser aceito pelas outras camadas sociais e religiosas.
Sempre professo que há a liberdade de culto prevista em nossa legislação, que nos permite cultuar qualquer divindade que acharmos interessante, inclusive essa liberdade nos permitiria cultuar o DIABO notadamente e oficialmente, sem qualquer tipo de artificio. Na lei não está dizendo que você pode cultuar uma divindade desde que ela seja bondosa ou parecida com o deus cristão. Afinal, bem e mal são tão relativos que muitas vezes o que é bom para uma religião se torna automaticamente mal para outra.
Isso impregnou tanto os candomblés e as umbandas modernas, que fica difícil fazer entender esse processo. Mentes entorpecidas, que repetem discursos que não pararam nem cinco minutos para pensar, sempre exaltados, com palavras caluniosas e acusatórias, causando uma onda de cancelamento de pessoas pelas redes sociais. Não respeitam nem sequer a posição de ancião de um sacerdote e sua sabedoria. Se não for como a sua “ideia” está errado, eles determinam. Pior ainda, o que ocorre no candomblé ketu principalmente, eles se arrogam de grandes detentores dos saberes de macumba universal, sendo que só o que passa pelo entendimento deles é que é o correto e todo o restante está errado. Se você tem um exu que come uma galinha de angola, isso é inadmissível para alguns destes, pois no seu culto – como afirmaram veementemente, mas de forma equivocada, até onde sei – que o sangue da Angola não tem “poder”. Pode não ter poder para aquele culto, mas para outro culto, ela tem fundamento.
Enfim, dentro das práticas de resgate da macumba que fazemos em nosso terreiro está a existência de assentamentos para Pretos-Velhos e Caboclos, que tem estruturas diferentes (mas com similaridades) com os Exus de Quimbanda, por exemplo. Isso é informação de nossa doutrina, mas que acaba também encontrando semelhança e paralelismo em outras vertentes. Se no seu caso não há, tudo bem, mas isso não te dá o direito de dizer que isso não existe ou que está errado. O mesmo caso é o sacrifício de animais, se na sua Umbanda não faz, OK! Mas existem Umbandas que fazem… e isso não transforma ela em menos umbanda do que a sua.
O que é preciso entender é que a Umbanda dentro do processo de desenvolvimento dela, no século XX é uma resultante do afastamento de ideias consideradas primitivas, advindas da sua matriz africana e indígena em busca de uma purificação do culto, para que não chocasse a sociedade que estava se acostumando com o recém-chegado espiritismo francês dentro da sociedade fluminense.
O mito de Zélio de Morais está perpetuado, e não queremos acabar com ele, mas entendemos um mito como ele é, apenas um mito. Zélio quase não teve relevância nos congressos espíritas de umbanda que tiveram lugar até metade do século XX, sendo que sua relevância e esse mito só foram promulgados posteriormente por Ronaldo Linares, fundador da FUGABC – Federação Umbandista do Grande ABC e mantenedor e fundador do Santuário Nacional de Umbanda. Mas Zélio já contava com 79 anos quando ele se encontrou em 1970 com Ronaldo Linares, sendo que Zélio viria a falecer em 1975, ou seja, cinco anos após o encontro. Zélio já não comandava a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade desde 1955, tendo passado a direção da casa para suas filhas Zélia e Zilméia. Logo, há muito ainda a ser contado desse encontro rápido e dessa ascensão tão rápida…
Eu até acredito no que dizem, mas questiono algumas coisas, como por exemplo a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade dar uma importância tremenda aos livros da codificação Espírita, organizados por Allan Kardec e não aceitar a relevância do sistema promulgado por Kardec para verificar a “veracidade” de uma comunicação espiritual, chamado de Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos (CUEE). Esse controle promulga que para algo ser real e verdadeiro é preciso que a mensagem provenha de mais de uma fonte espiritual em locais diferentes. Até onde podemos notar, só as verdades promulgadas pela Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade eram relevantes para eles, e daqueles que deles nasciam. Não é estranho, no mínimo? Também não é estranho aprender e se tornar um grande promulgador da Umbanda em cinco anos como ocorreu no caso do Ronaldo Linares? Não é estranho também demorar quase 70 anos para esse “fenômeno” se tornar conhecido, sabendo que existia muitos terreiros em diversas partes do país há mais de 100 anos?
Não né? Eles não acham estranho, eles só acham estranho que uma preta-velha possa ter um assentamento, alimentado de sangue e com penas de galinha de angola. Ora, ora!
De fato, é mais comum ver firmezas sendo feitas na Umbanda e quase nenhum fundamento de assentamento, mas isso tem a ver com essa perda de memória e de tradição, muitas vezes pela missiva espírita que promulga que não há “fetiches, amuletos ou talismãs” na prática da espiritualidade e que tudo que é material é apenas uma muleta ilusória e atrasada. Será?
Seja como for, existem sim assentamentos, mas eles não são feitos para todas as entidades, visto que a própria entidade deve requisitar seu assentamento e ele deve ser feito por alguém possuidor de outorga para tal (muitos não possuem, se perdeu, assim como não possuem mão de faca). Além disso, podemos ter assentamentos de falangeiros de Orixás, que são confundidos dentro da Umbanda com os próprios Orixás, mas para os umbandistas pouco importa se é um falangeiro ou o próprio Orixá, Inquice ou Vodun que se apresenta ali, o que importa é a manifestação daquela força e isso também é de tradição banto, ou seja, a tradição do Nkisi.
O que falta a esses influencer de 15 segundos é pensar mais do que o tempo de seus vídeos, buscando literatura, pessoas experientes, estudiosos e principalmente sacerdotes gabaritados nas práticas antigas. Mas isso dá preguiça e não é possível atingir com um google (apesar que é possível sim, pois tem uma base de dados de artigos científicos enorme, mas ler cansa, não é? Dura mais que 15 segundos? Desconsidera!).