Esses dias postei uma foto da nossa Gira Grande no Instagram da Cova de Tiriri e um comentário me chamou atenção: “E aquele crucifixo atrás do Conga?”.

Só essa frase dá para ser a fonte de inspiração de diversas elucubrações, contudo o que quero focar aqui é a convivência da Umbanda e da Quimbanda. Esse tipo de assunto já foi abordado por mim e está disponível no número 02 da Revista Nganga – Feitiçaria Tradicional Brasileira.

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Mas mesmo sendo abordado em um texto da revista e eu já ter me pronunciado sobre isso em diversos stories, acredito que é coerente deixar um texto mais explícito sobre algumas questões e confusões que cercam a construção da oposição Umbanda vs. Quimbanda.

Antes de mais nada devemos ter uma concepção da formação histórica de ambas as religiões ou práticas.

A Umbanda, que se popularizou mais após o congresso de 1941, mas vejam, essa reunião tinha o nome de Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda e foi fechada entre alguns poucos terreiros e ideólogos da Umbanda que praticavam a chamada Umbanda Branca, postulada por Zélio ou que tinham certa afinidade por ela.

A Umbanda do Zélio, como já falamos em diversos textos, não foi a primeira Umbanda. Ela toma essa forma e fama após a década de 1970 com o advento de uma massificação do mito fundador. Mas se você lê os textos do congresso percebe que nem no primeiro e nem no segundo (realizado em 1961) a figura do Zélio tem relevância central.

Além disso, os historiadores estão aí o tempo todo para demonstrar práticas exatamente iguais a Umbanda, mas que não recebiam esse nome ou recebiam um nome similar ou nem nome tinham.

A Quimbanda como prática de feitiçaria e cura é muito mais antiga que a Umbanda em corpo estrutural, porém, a Umbanda ganhou mais a mídia por estar mais associada aos valores que a sociedade achava aceitáveis como a questão da alegoria cristã, o excesso de apego espírita e outras questões menos dignas como o embranquecimento do culto.

Quando digo embranquecimento, não digo só com a tentativa de obscurecer as raízes africanas da Umbanda, mas também as raízes indígenas. Essas raízes são muito bem fundamentadas e são motivo de orgulho dentro da Quimbanda, mas na Umbanda passaram por uma fase de aceitação, ressignificação e posterior desmerecimento.

Mesmo assim, a Umbanda tem viés cristão em algumas condições, mas muito diferente do cristianismo ortodoxo ou apostólico que tentam imputar a ela. Não existe a questão dogmática do espiritismo e do cristianismo no que tange a espiritualidade de Umbanda, apesar de alguns terreiros absorverem esse tipo de conteúdo e transformarem isto em algo doutrinário em suas fileiras.

Contudo, o cristianismo na Umbanda vem por meio do povo, do popular, das práticas folclóricas que nada tem de corretas e ortodoxas segundo a Igreja em si. Muitas dessas práticas podem ser confundidas com heresias, blasfêmias e até mesmo punitivas como atos de bruxaria, segundo as regras da Inquisição.

Não consegue enxergar isso? Pois veja, no catolicismo popular existem diversas simpatias, diversos benzimentos, diversas formas de comungar com o espírito dos santos, de Deus e dos Anjos. Em alguns casos tortura-se um santo para se obter um benefício, faz-se entregas de comidas e objetos quando conseguimos superar um desafio, entre outros. Tudo isso são práticas populares não reconhecidas pela Igreja.

Então, temos que ter cuidado ao associar o cristianismo sempre ao sistema escravizador e dogmático da IGREJA em si, desmerecendo o uso desse tipo de folclore em sua temática para prática de feitiçarias.

Você consegue mais informações sobre essa prática mágica em “The Testamento of Cyprian the Mage – Volume 1 / Encyclopaedia Goetica Book 3” de Jake Stratton-Kent.

Dentro dessa visão e sabendo da característica cultural do povo de Angola e do Congo que foram os fundamentadores da Quimbanda e da Umbanda brasileira, podemos perceber que eles absorviam conhecimentos mágicos e religiosos de outras culturas e os reinterpretavam conforme acreditavam que deveriam ser, sem qualquer tipo de ressalva, medo ou represália.

Então, a absorção do cristianismo é uma das práticas mais comuns de ser encontrada na África Banto, justamente por essa característica cultural. Claramente que há ainda toda a força empenhada pelo europeu e os senhores da elite da época de manter todos dentro da fé cristã, assim podiam controlar os mesmos. Contudo, acreditar que o africano aceitou isso como um cordeiro é no mínimo ingênuo.

Vejam, os Inquice mais cultuados no Brasil, assim como os Orixás¹ são geralmente guerreiros, diferente das divindades mais cultuadas nas terras africanas. Por quê? Porque aqui havia uma guerra pela vida!

Então, na iconografia de Oxum, Iemanjá, Iansã, Xangô, Oxóssi e Ogum, o que se vê? ARMAS! Até mesmo a figura mais associada ao Oxalá que cultuamos no Brasil, não é exatamente de Obatalá, mas de Oxaguiã, que é um Orixá da família Fun Fun, associado como uma qualidade de Oxalá mas com um aspecto mais aguerrido, guerreiro.

Existiu o sincretismo? Existiu…

As pessoas entendem hoje o que é o sincretismo? Parcamente…

Mas as associações foram dadas, de certa forma para “omitir” o culto a uma força, para desviar a atenção dos perseguidores ou até mesmo porque aquela força fazia sentido dentro do propósito que os feiticeiros de então buscavam.

São Jorge, São Sebastião por exemplo, são claros santos guerreiros. Vários outros santos como Santo Expedito, Santo Antônio e até o paciente São Francisco, tem suas vidas completamente romanceadas para o público leigo, mas que quando você tem contato com a biografia da vida deles, você se assusta até em como eram combativos e como em muitas vezes possuíam defeitos tremendos que contrastam com a questão da santidade.

Entendam, TUDO ISSO É ALEGÓRICO!

A alegoria, a apropriação de um símbolo e sua ressignificação conforme a cultura, sempre ocorreu desde a pré-história pelos diversos povos e não só pelos europeus. A cultura helênica, a cultura acadiana, a cultura caldeia, a cultura babilônica, a cultura persa, a cultura egípcia, a cultura iorubana, a cultura banto e todas as culturas indígenas, tem muito impacto na formação de todas estruturações religiosas atuais.

Mas para explicar isso, seria necessário um livro, por isso recomendo que leiam sobre a formação da religião judaica a partir do conhecimento egípcio e sua ressignificação posterior do contato babilônico e por fim com o fim do exílio com a libertação persa. Vocês vão se chocar quando perceber certas similaridades de culto.

Mas voltando ao Brasil, dentro da prática de Umbanda, concluímos que a tradição nos colocou que o uso de imagens de santos era uma parte da ritualística. Eles são obrigatórios? Claro que não! O próprio caboclo Mirim, na Tenda Mirim, tirou essa necessidade das imagens, mas também afastou o entendimento africano da Umbanda. Vejam, que contradição, não é?

Além disto, podemos destacar que os Inquice, divindades dos povos banto, não possuíam formas físicas, não podendo ser retratados por estátuas, contudo alguns Orixás tinham formas humanas pois era heróis mitificados e deificados.

Quem está certo? Aquele que coloca uma imagem de santo, de orixá ou não põe nada? Ninguém está certo ou errado, isso é questão da tradição. Manter essa tradição não quer dizer menosprezar o que existia, muito pelo contrário, pois nossos antepassados – e a Umbanda e Quimbanda são religiões que prezam o saber dos ancestrais – usavam dessa forma, dentro do seu propósito e funcionava.

Mas se isso te incomoda, você pode tirar, tranquilamente.

Até caberia a pergunta: “Na Quimbanda cultua Deus?”.

Para isso deixo o vídeo do Tata Malembu de 7 Catacumbas para explicar melhor sobre o assunto.

Acredito que com o todo exposto percebemos que a Quimbanda se fechou dentro da sua tradição, aceitando pouco daquilo que veio de fora, principalmente de um sistema que era o opressor.

Já a Umbanda abriu-se – alguns dirão de forma forçada – a outras práticas e vemos a inclusão posterior de muito preconceito dentro dela baseando-se na doutrina espírita², mas essa doutrina que eles incluíram já é uma doutrina espiritólica, com muito preconceito dogmatizado dos radicais da igreja que não conseguiram abandonar completamente sua religião católica e colocaram seus dogmas dentro do espiritismo (que nem religião era em sua concepção original).

Então, com tudo isso exposto, fica claro que são religiões quase irmãs que seguiram rumos um pouco diferentes, mas que no cerne bebem da mesma (das mesmas) fonte. Mas como a gente faz para cultura Umbanda e Quimbanda?

A resposta é: “Com compreensão de suas similaridades e diferenças”.

Os templos de Quimbanda precisam dividir espaço com os templos de Umbanda? Não necessariamente, mas em nossa sociedade é preciso que isso se faça pela escassez de locais em que podemos criar templos individualizados.

Antigamente, os terreiros também dividiam o mesmo espaço. Quando se tocava para Umbanda, enfeitava-se o Congá para os Guias e Orixás, quando era a Quimbanda que mandava, se fechava o Conga e tocava naquele mesmo espaço a Quimbanda.

Por que então não podemos fazer isso hoje? A questão é que nem sempre precisa fechar o Congá. Você pode ter certeza de que o Exu não se incomoda com a imagem de Jesus Cristo ou de um Santo ali presente, até porque ele entende que tudo é simbólico.

A ritualística muda, os termos mudam, os pontos mudam, o ambiente pode ficar mais escuro, menos iluminado etc.? Pode, sem problema algum, assim como pode ser feito na clareza do sol, na praça pública ao meio-dia!

Essas barreiras são colocadas por nós encarnados e não pelas entidades. Veja, que dentro de um contexto mitológico a maior parte das divindades são monistas, ou seja, carregam tanto o princípio da luz, quanto o princípio da sombra dentro de si.

Então, a cruz que geralmente fica acima ou atrás de uma imagem de Jesus Cristo na Umbanda, não representa seu martírio, mas sim um portal de acesso, uma chave, uma porta por onde o mundo dos espíritos tocam o mundo dos homens. O Congá é o ponto de acesso dos espíritos para dentro do terreiro, aquela cruz representa isso, a passagem entre dois mundos.

Não sei por que as pessoas se chocam tanto com o símbolo da cruz, sendo que ela foi um objeto usado por povos não-cristãos, durante toda a civilização, mesmo quando nem existia cristianismo. Ainda fica pior quando ele critica uma cruz, mas vai no cemitério entregar oferenda para seu exu no CRUZEIRO, ou vai até uma encruzilhada em CRUZ para fazer oferendas etc.

Primeiro, entenda que a Umbanda e Quimbanda são formas individuais de práticas, sem um órgão regulador de suas práticas e quem traz as instruções são os espíritos chefes responsáveis pela casa. Você acha mesmo que o Exu Chefe e o Caboclo chefe não se conversam? Ledo engano…

Concluindo o texto que já está muito longo, tanto faz o local em que está se fazendo o ritual, o importante é o resultado. Dizemos dentro da Quimbanda que o Kimbanda está sempre trabalhando e que a gira nunca está fechada. Também dizemos dentro da Umbanda, que somos umbandistas o tempo todo. Oras, não é o mesmo discurso? Então pouco importa o local de culto.

Não se limite pela ignorância e pela grosseria. Expanda seu pensamento! SE LIBERTE!


¹ Lembrando que os Orixás – de cultura Iorubá – foram incluídos tardiamente dentro da cultura brasileira, pois primeiramente foram trazidos em massa os povos de origem do Benguela, Dongo, Lunda, Luanda, Matamaba e Congo, que tem cultura banto.

² Eu defendo o estudo do espiritismo, assim como defendo todo tipo de estudo que faz a mente pensar. Mas estudar não é aceitar completamente, até mesmo porque o próprio codificador do espiritismo dizia: “Prefiro rejeitar 10 verdade do que aceitar 1 mentira”.

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