Século XIX, a Europa fervilha com a ideia do positivismo, o homem é o centro do Universo novamente, porém em alguns círculos da alta-sociedade, alguns distintos senhores e senhoras mais abastados, são surpreendidos com mesas que respondem aos seus comandos. A princípio acreditam se tratar apenas de um fenômeno do campo da mágica e da teatralidade, logo depois algum tipo de prestidigitação, mas enfim com a pesquisa sistematizada por aquele que viria a assumir o nome de Allan Kardec, as coisas começam a se tornarem mais compreensivas, deixando o positivismo com um impacto ainda racionalizador, porém mais amplo, referendando as palavras do Poeta Inglês.
“Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia.”
Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail / ★1804 ✟1869), foi um visionário, muito além do seu tempo, mas ainda assim um homem de seu tempo. Preso em suas próprias ideias, mas com uma capacidade investigativa e dedutiva tremenda, mas ainda assim com os preconceitos da época em questão e suas limitações. Afinal, estamos falando de um ser humano, não é mesmo?
Com o advento do Espiritismo, Kardec começou a chamar a atenção para si. Mesmo sendo contrário a essa manifestação de muitos simpatizantes a nova doutrina, o Espiritismo, era considerado profeta por muitos. Passou a sua vida tentando desfazer esse engano e mostrando pela lógica e coerência que lhe eram peculiares, de que tudo deveria ser passado pelo crivo da razão e não simplesmente aceito ou endeusado. Claro que isso lhe trouxe certa fama em alguns círculos e também muita inveja e perseguição. Em meio ao século iluminista, ainda podíamos ver piras de livros sendo queimados por pura ignorância. Isso não se dava só na questão teológica ou religiosa, mas também por diversos “cientistas” e intelectuais, que refutavam tudo, sem antes se deter ao exame correto das coisas.
O século XIX também foi bem profícuo para outras vertentes espiritualista, esotéricas e ocultistas, porém o Espiritismo tinha a questão da racionalidade como seu ponto principal e acabou sendo adotada por grandes nomes da cultura, da sociedade e até mesmo por diversas figuras proeminentes em seus campos de atuação. Abriu-se assim também espaço para os médiuns anônimos que se tornavam mais famosos e isso começou a gerar a vaidade, sendo que na própria codificação, apesar de se utilizar dos médiuns, Kardec fora instruído a deixar seus nomes de fora da compilação dos livros, visto que o conteúdo da doutrina estava sendo ditado pela Espiritualidade e apenas sendo compilado por Kardec, tendo nos médiuns apenas as penas, canetas e tipógrafos para transmissão da mensagem.
Essa postura, deixou alguns médiuns enraivecidos pois seus egos não estavam satisfeitos. Queriam seus nomes ao lado de pompas e de claras demonstrações de poder, sendo alçados a grandes voos na sociedade parisiense e também européia da época. Isso acabou atrasando a divulgação do Espiritismo e também sua aceitação como uma doutrina filosófica legítima, racional e mutável. Dentre esses estava a figura de Jean-Baptiste Roustaing (★1805 – ✟1879), que fora advogado e autor de diversos trabalhos jurídicos, mas também o maior inimigo do espiritismo e do próprio Kardec.
Roustaing simpatizava com as ideias de Kardec, porém as deturpou ao publicar em francês a obra Les Quatre Évangeles – Spiritisme Chrétien ou Revélation de la Revélation, em português “Os Quatro Evangelhos – Espiritismo Cristão ou Revelação da Revelação”, que fora toda psicografada pela médium Émilie Collignon. Já aqui podemos ver um grave erro conceitual e doutrinário, pois dentro das obras de Kardec só são aceitos textos que passaram pelo Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos (CUEE), em outras palavras, só eram aceitos textos que eram transmitidos a diversos médiuns e que mantinham em seu conteúdo ou cerne a mesma mensagem. No caso de Rounstaing ele se utilizou apenas de uma médium, que por mais formidável que fosse, não poderia ser a única a ser consultada.
Como consta em quase todos os artigos que se fala sobre esse tema, o alerta do guia espiritual Erasto, encontrado no “Livro dos Médiuns”, é de suma importância:
“É preferível rejeitar dez verdades a aceitar uma única mentira.”
Afirmação que é muito importante pois nos leva de fato a entender como é a criação mediúnica de textos e mensagens e que possamos compreender que nada que é enviado ou transmitido mediunicamente está isento de interferência do médium ou do conhecido animismo. Com isso em mente, podemos destacar diversos equívocos na obra de Roustaing, a começar pelo inicio (de fato) que é o uso da sra. Emilie de Collignon apenas como médium escrevente.
Roustaing pelo que se percebe tentou transformar o Espiritismo em uma crença ou religião, o que não era o principal ponto de Kardec e nem dos Espíritos que fizeram da codificação uma doutrina. Isso é muito interessante de se notar, pois exatamente a mesma influência veio para o Brasil e acabou por tomar grande força, transformando de fato, em terras brasileiras, o Espiritismo em uma religião, com vários médiuns escrevendo diversos textos e artigos, sem passarem necessariamente pelo Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos.
Além disso o advogado de Bordeaux, tentara criar um meio-termo para aqueles que praticavam o catolicismo ou o protestantismo, para migrarem para esse novo espiritismo que ele fazia. Um dos pontos para essa afirmação é que ele superestima ou dá como afirmativa muitas das palavras da bíblia como sendo realmente a palavra do Criador ou de Deus. Saindo totalmente do campo racionalista proposto por Kardec, adentrando em uma volta a estrutura da fé pura e simples, com manifestações fenomênicas para explicar tudo, conforme a Vontade de Deus. Antagonizando portanto a doutrina Espírita. Kardec por meio do estudo da mediunidade, das manifestações dos espíritos e também das suas comunicações, desenvolveu algo pautado na racionalidade, no critério e na metodologia, Roustaing subverteu isso.
Além de se colocar como um opositor (velado em certos momentos, declarado em outros) do Espiritismo, crendo assim que era preciso uma nova revelação, que ocorreria por intermédio de sua observação e supervisão sobre os textos da sra. De Collignon.
A todo momento Roustaing em sua obra faz com que a Igreja Católica e a figura central do Sumo-Pontífice se tornem proeminentes, deixando claro que o futuro da humanidade estaria interligado a essa estrutura ultrapassada, da igreja de Roma. Além disso se assenhora de uma verdade única, conduzindo o leitor a acreditar que se trata de uma nova crença Divina pautada na crença milenar e que Jesus irá dominar o mundo. Muito similar ao que vemos hoje em seitas neopentecostais.
Seus erros quanto a mediunidade foram terríveis, considerando a sra. Collignon a única e respeitável entidade a se manifestar como intermediária de APÓSTOLOS E SANTOS, sem avaliar a autoridade moral da médium comunicante. Dentre esses santos chamados está São João Batista, que também fora autor de diversos textos dentro da Obra de Kardec, seria ele então um embusteiro? Desdizendo o que fora dito na codificação anteriormente e comprovadamente recebida por diversos médiuns?
A obra inteira é cheia de contradições desde a sua formatação inicial até mesmo as conclusões que nos levam a tomar, podemos assim dizer que Roustaing fez um desserviço a doutrina espírita ao tentar ao mesmo tempo criar uma nova revelação e aproveitar-se da popularidade do Espiritismo a época. De fato de alguma forma ele foi bem sucedido, pois nossa FEB (Federação Espírita Brasileira) adora cometer os mesmos equívocos e por diversas vezes se coloca em posição de aceitar as proposições contidas na obra Roustaiguiana. Então, com esse alerta, vamos manter em nossa mente o pensamento de que não é porque está escrito e supostamente ditado por um Espírito que é algo bom.
Devemos ser críticos e isso expande o campo além do Espiritismo, pois temos diversas obras Espíritas que são verdadeiros desperdícios de celulose e tinta, que nem deveriam ter saído da imaginação do autor, assim como temos diversas obras Umbandistas, principalmente de um certo Sacerdote, que também da mesma forma como Roustaing, quis trazer a Revelação da Revelação, para a Umbanda, que não servem nem como peso de papel, mas que gerou um séquito de seguidores sedentos por iniciações e poderes, que são apenas ilusórios.
Compreender é criticar abertamente e de forma racional, e não apenas ler e absorver algo sem discernir. A esses que não discernem, damos os nomes de escravos das sombras. Liberte-se.