Já é difícil falar sobre Umbanda, mas uma das coisas mais ingratas para se falar no cenário religioso brasileiro é sobre Kimbanda ou Quimbanda. Primeiramente devido a falta de informação e ao preconceito incutido em todas as práticas que não são notadamente cristãs. O Kimbandeiro ou Kimbandista acaba sendo taxado de tudo, inclusive de satanista.

Curiosamente, encontramos livros de Umbanda retratando os Exus que trabalham na K/Quimbanda como entidades demoníacas, e nós, os próprios umbandistas, criticamos essa visão. O que devemos entender é que a Kimbanda ou Quimbanda – e aqui uso ambas como sinônimo – é de fato um movimento contrário ou de resistência as práticas cristãs já encontradas aqui há muito tempo.

Segundo Nicholaj de Mattos Frisvold, a Quimbanda é um movimento de contracultura, de entidades que eram contrárias a imposição das práticas cristãs, que mantinham suas práticas nativas e algumas até mesmo criavam figuras atemorizantes, associando-se propositadamente suas divindades aos adversários (Satan) de outras religiões.

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Não podemos ser inocentes, devemos compreender o cenário da época. Indígenas, Africanos e alguns Europeus não comungavam das práticas cristãs e não gostavam da imposição forçada. Por isso mesmo, criar um cenário de MEDO é uma prática comum. Mas o que não podemos deixar de notar é que isso não implica que o cristão é bom e o Kimbanda é malvado. Também não nos dá o direito, como umbandistas, de dizer que os Kimbandistas mais alinhados a ideias luciferianas, satânicas e até mesmo “demoníacas” estão errados em associar os seus exus aos demônios e figuras combatidas pela igreja cristã.

Vamos lembrar que os Cristãos fizeram o mesmo, pegando divindades de outros povos e demonizando o mesmo. Isso já era comum na própria cultura hebraíca, onde um deus é retirado de sua condição divina para ser colocado como um ser maligno. Vejamos Baal, que em hebraico tem uma conotação próxima de Senhor ou Lorde, sendo um dos deuses cultuados pelos fenícios e também do próprio povo Hebreu, como vemos em  I Reis 18:28:

Respondeu Elias: Eu não tenho perturbado a Israel; mas tu e a casa de teu pai, por terdes deixado os mandamentos de Jeová, e por teres tu seguido os Baalins.

Agora envia e ajunta a mim todo o Israel no monte Carmelo e os quatrocentos e cinqüenta profetas de Baal e os quatrocentos profetas da Asera, que comem da mesa de Jezabel.

Acabe enviou a todos os filhos de Israel, e ajuntou os profetas no monte Carmelo.

Elias, chegando-se a todo o povo, disse: Até quando claudicareis para duas partes? se Jeová é Deus, segui-o; se, porém, Baal o é, segui-o. O povo não lhe respondeu palavra.

Então disse Elias ao povo: Eu sou o único que fiquei dos profetas de Jeová, mas os profetas de Baal são quatrocentos e cinqüenta homens.

Dêem-se-nos, portanto, dois novilhos; escolham eles para si um novilho, e dividindo-o em pedaços, o ponham sobre a lenha, porém não metam fogo por baixo; eu prepararei o outro novilho, e pô-lo-ei sobre a lenha, porém não meterei fogo por baixo.

Invocai vós o nome do vosso deus, e eu invocarei o nome de Jeová; o Deus que responder por meio do fogo, seja esse o Deus. Todo o povo, respondendo, disse: É boa a proposta.

Disse Elias aos profetas de Baal: Escolhei para vós um novilho, e preparai-o primeiro, porque sois muitos, invocai o nome do vosso deus, e não metais fogo por baixo.

Tendo eles tomado o novilho que lhes fora dado, prepararam-no, e invocaram o nome de Baal desde a manhã até o meio dia, dizendo: Baal, responde-nos. Porém não havia voz, nem havia quem respondesse. Rodeavam manquejando o altar que se tinha feito.

Ao meio dia Elias zombava deles, e dizia: Gritai em altas vozes, pois ele é um deus; ou está meditando, ou está em retiro, ou está em viagem, ou porventura está dormindo, e necessita que o acordem.

Clamavam em altas vozes, e segundo o seu costume se retalhavam com facas e lancetas, até sair-lhes sangue.

Esse deus Baal passou a ser demonizado e chamado de Baal Zebul, Baalzebult ou ainda Belzebu, aquele que por nós é associado ao diabo. Podemos notar em várias passagens bíblicas1 que o povo hebreu cultuava Baal. Ele (Baal) era um deus como muitos outros e que rivalizava com Jeová (Javé, Iavé ou YHVH).

Logo há uma campanha para sua difamação e com a perda de sua popularidade ele passa a ser considerado um dos muitos demônios, conhecidos como o Senhor das Moscas. Claro que tudo isso carece de fontes históricas mais precisas.

Essa prática também foi utilizada para “diminuir” a figura de Exu Orixá nos cultos de Candomblé e Nação e posteriormente para demonizar os Exus de Quimbanda e de Umbanda.

Aqui chegamos a questão crucial do texto, que é a diferenciação entre exus que trabalham na Quimbanda e na Umbanda. Como visto em muitos outros textos nossos aqui do blog2, eu sempre bato na tecla de que o Exu como figura e entidade é um ser com uma moral própria e que transita entre o que consideramos ético e não-ético. Além disto, é uma entidade dada como um trickster que é uma espécie de entidade espiritual que não está muito preocupada em só ajudar os outros e nem com sua “evolução”, dentro da ótica cristã e também espírita que é a mais conhecida de nós.

São seres amorais, com grande carga de energia emocional ainda não depurada, que procuram agir conforme suas próprias convenções. Existem dentro das categorias de exus os que chamamos de espíritos de exu humanos (em algumas vertentes chamados de exunizados) e os exus naturais, que são entidades que sempre existiram na “natureza” e na “sobrenatureza” e que atuam como domínios e poderes per si.

Em outras palavras, são a própria personificação de uma força, como a raiva, a doença, a cólera e afins. Por emanarem e serem isso, quando muito próximos de alguém, o contaminam de forma espiritual para que a pessoa passe a vibrar em cólera, em doença e etc. Contudo não são malignos, estão apenas cumprindo seu papel na criação.

Ainda dentro dessa categorização, encontramos diferenças muito claras entre Exus de Umbanda e Exus de Quimbanda. Na Quimbanda ou Kimbanda, muitas vezes, tais espíritos são de certa forma ancestrais, antigos Tatás e sacerdotes de cultos de nação e tradicionais, que desencarnados tomam a função de ajudar no culto.

Vemos muito isso na Kimbanda e também outros cultos derivados do Congo-Angola como as reglas de Palo. Já na Umbanda, podemos encontrar disto também, mas outros espíritos ainda de outras culturas fazem parte da Umbanda, encontramos Yorubás, encontramos Cristãos e encontramos Indígenas, além dos Fon, Nago, Bantus e Malês3.

O que podemos notar é que a predominância dos Exus de Umbanda é de natureza européia. Então, só por isso podemos definir que eles tem certos “preceitos” cristãos incutidos em si. Outros são nativos ou indígenas, como os caboclos Kimbandeiros (Arranca Toco, Cobra Coral, Pedra Preta, etc.) e outros ainda são Pretos-Velhos Kimbandeiros (Pai Cipriano, Pai Zulu, etc.). Só por isso já podemos afirmar que os Exus de Kimbanda ou Quimbanda e de Umbanda são diferentes.

Se formos pegar ainda pela questão da diferenciação das palavras:

Kimbanda com K é um culto de origem Bantu, com forte influência da ancestralidade sagrada. Originário de fato da Mbanda (ou Umbanda em Kimbundo) e praticado pelo Kimbanda (aportuguesado virou Kimbandeiro) que é o Tatá (pai). É um processo mágico de cura e que se assemelha a um xamanismo ou pajelança.

Quimbanda com Q seria a derivação desse culto, influenciado pela multi-cultura brasileira e que é aberto ao sincretismo. Aqui encontraríamos uma Quimbanda mais “tradicional” com as regras da ancestralidade, mas também encontraríamos as Quimbandas mais “pesadas” do ponto de vista popular, com a inclusão de demônios ou a associação de espíritos com demônios. Porém, a prática é quase similar no que se refere ao objeto: tratar uma pessoa naquilo que ela necessita, sem questionamentos morais sob ótica cristã.

Então, a Quimbanda é bem mais eclética do que a própria Umbanda em si, por não ter essas travas fixas. Claro que os tradicionalistas defendem a sua Quimbanda, associando todas as outras como práticas negativas e deturpadas. Mas não estariam eles fazendo exatamente a mesma coisa que os primeiros católicos/cristãos/hebreus com as diversas divindades que cultuavam? A história se repete, pois a moral cristã está fortemente incutida até mesmo nos NeoPagãos.

Então em resumo os Exus tem uma maior liberdade na prática da Kimbanda e da Quimbanda, quando estão desassociados da Umbanda. Dentro da Umbanda, os Exus devem seguir as regras daquele culto e são geralmente tutelados por entidades de Direita (éticas, sob certa visão cristã).

Justamente por isso que alguns exus não se manifestam na Umbanda, apenas na Quimbanda, como o Exu Assassinato, o Exu Iran, o Exu Belzebut, o Exu Facada, o Exu Gargalhada, o Exu Maioral, o Exu Matança, o Exu Mau Olhado, o Exu da Morte, o Exu Sete Buracos, o Exu Sete Diabos, o Exu Sete Demônios, etc.

A quimbanda que se encontra dentro da Umbanda é uma quimbanda diferente da Quimbanda (com letra maiúscula) que é uma tradição a parte, assim como a Macumba Carioca. Por isso devemos entender claramente a diferença entre elas.

Se estamos na Umbanda, os Exus lá irão se manifestar sobre as regras do local, conduzidos pelas entidades chefes do local e são convidados. Raramente um Exu de Quimbanda irá trabalhar na Umbanda, sendo mais comum Exus só de Umbanda, isso falando de forma incorporada.

Já um Exu de Umbanda, atrelado aos ideais da Umbanda, jamais irá trabalhar na Quimbanda. Porém isso não faz do Exu da Umbanda um anjo ou guardião, só as regras da casa é que são diferentes. Ainda são seres negativados, densos e que atuam em um processo dual.

De qualquer forma, eles tem trabalhos a fazer. Saravá Exu! Exuê!


1 Passagens com referências a Baal: Êxodo 34, Números 22:41, Juízes 2:13, Juízes 6:25, 1 Reis 16:31, 1 Reis 18:19, 1 Reis 22:54, 2 Reis 10:19-28, 2 Reis 11:18, 2 Reis 17:16, 2 Reis 23:05, 2 Crônicas 23:17, Jeremias 2:8, Jeremias 7:9, Jeremias 11, Jeremias 12:16, Jeremias 19:05, Jeremias 23:13, Jeremias 32:29, Jeremias 32:35, Oseias 2:8, Oseias 13:1, Sofonias 1:4, Romanos 11:4, Miqueias 5:13

2 Textos falando sobre Exus: Exunização da Umbanda, Amoralidade de Exu, Exu – Vamos desenrolar de vez essa história?, Exu – Um estudo sobre a esquerda, Exu-Mirim e Pombagira-Menina.

3 Existem muito mais povos e culturas na Umbanda.


Ouça o Papo na Encruza 01 – Exunização na Umbanda

Ouça o Papo na Encruza 33 – Orixá Exu e a Umbanda

Ouça o Papo na Encruza 37 – Quimbanda

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