O estudo sobre religiões japonesas é sempre desafiador para o pesquisador pois necessita de certa compreensão da cultura japonesa e do pensamento oriental, tanto que ao conhecer o seu idioma (nihongo), já observamos que a construção gramatical da frase é completamente diferente da nossa ocidental. Sendo assim, se a forma de pensar é tão diferente, naturalmente seus hábitos e costumes também são e assim como sua visão de mundo. Temos procurado, nesta série de textos, demonstrar uma perspectiva sócio antropológica das religiões no Japão, e considerando que a religião é uma expressão cultural, poderemos, de igual forma, conhecer mais desta cultura tão fascinante.
Das religiões japonesas presentes no Brasil, há duas que são mais expressivas e que possuem um grande número de adeptos que são a Seicho-No-Ie e a Igreja Messiânica Mundial. No Brasil as novas religiões japonesas chegaram juntamente com os imigrantes japoneses em 1908 que vinham na esperança de enriquecer e retornar para sua terra natal. O governo japonês incentivou a emigração como alternativa para aliviar os conflitos sociais. Os primeiros contingentes foram destinados ao Havaí, Canadá, Peru, Argentina e posteriormente ao Brasil. Iludidos pelo “paraíso brasileiro” a bordo da embarcação a vapor Kasato Maru, a primeira remessa de japoneses chegou ao porto de Santos em 1908 (visite o Museu da Imigração Japonesa localizado no bairro da Liberdade – http://www.museubunkyo.org.br).
A Seicho-No-Ie surgiu no Japão em 1930, num momento de forte tensão política e econômica provocada pela “Restauração Meiji”, iniciada em 1868. As novas religiões eram resultantes de uma efervescência cultural produzida por mudanças desencadeadas pela entrada do Japão no sistema econômico capitalista. Nesse sentido, a partir dos anos 30, iniciou-se um processo de ‘ocidentalização do Oriente’, em que a importação da tecnologia militar, dos costumes e elementos da cultura americana e européia seria apenas um capítulo da história pré Segunda Guerra Mundial.
Foi neste contexto que Masaharu Taniguchi (1893-1985) teve sua formação intelectual que resultaria mais adiante na fundação da Seicho-No-Ie. Filho de lavradores, Taniguchi nasceu no município de Kobe, era o segundo filho de uma família numerosa, formada por cinco meninos e duas meninas. Aos quatro anos de idade, foi adotado por uma tia e levado para a cidade de Osaka. Taniguchi teve a oportunidade de ingressar na universidade de Waseda, ali, apesar de não concluir o curso, foi influenciado por Oscar Wilde, William James e Arthur Schopenhauer. Taniguchi tomou conhecimento na universidade também da psicanálise, hipnotismo, espiritismo e da corrente norte-americana do “Novo Pensamento”. Foi membro da seita Oomoto por cinco anos contribuindo com artigos os quais eram escritos para periódicos da sede central em Ayabe, até se desligar dela, em 1921. Nos oito anos seguintes, Masaharu Taniguchi, já casado com Teruko Emori, trabalhou na Vacuum Oil Company como tradutor, o que lhe permitiu estabilidade financeira, ao mesmo tempo em que pode aprofundar seus conhecimentos sobre o Budismo, Cristianismo e escritos da Ciência Cristã.
No final de 1929 Masaharu Taniguchi atribui ao deus Sumiyoshi, divindade xintoísta, a origem das revelações que afirmava ter recebido. Sendo assim, decidiu reunir seus escritos e publicá-los em 1º de março de 1930, lançando naquela ocasião a revista Seicho-No-Ie, que significa “lar do progredir infinito”. Essa revista continha artigos de sua autoria e nela Taniguchi apresentava entre outras coisas, as suas descobertas e as revelações recebidas. O lançamento da revista impulsionou o movimento e, em 1932, a distribuição da revista adquiriu caráter nacional e seu conteúdo passa a ser preenchido também com relatos de cura de leitores.
Sobre o momento da revelação divina que o fundador afirmou ter recebido, foi assim registrado no volume 20 da coleção A Verdade da Vida:
“Certo dia, estava mentalizando – sentado, olhos cerrados, e mãos em posição de prece – para receber a Revelação da Verdade. Nesse momento, não sei se foi causalidade ou se foi orientação de Deus, lembrei-me das palavras Shiki soku zé kuu (tudo que é fenomênico e vazio de essência) da escritura budista. Súbito, não sei de onde, passei a ouvir uma voz que parecia uma grande vaga: uma voz grave, porém ampla e macia, mas bastante imponente. A matéria não existe!, disse essa voz.
Então lembrei-me das palavras Kuu soku zé shiki (O vazio é igual ao fenomênico). Repentinamente, essa voz que parecia uma grande vaga, respondeu: Tudo surge do nada. Todo fenômeno é manifestado pela mente e, originariamente, é nada. Como é originariamente nada, tudo surge do nada. Como a ilusão de que tudo nasce do existe, ocorre o apego ao existe, e há o sofrimento. […] Fica sabendo: todo e qualquer fenômeno é inexistente. É inexistente inclusive o teu corpo carnal. Então, pensei se existe a mente. No mesmo instante, a mesma voz respondeu: ‘A mente também não existe!’ Até então, eu pensava que houvesse um misterioso cavalo indomável chamando mente e que seria muito cansativo domá-lo. Entretanto, conforme a declaração: ‘A mente também não existe!’, eu desci desse cavalo indomável da mente para a terra firme da Imagem Verdadeira.
‘Se nem a mente existe, então, não existe coisa alguma?’, assim perguntei novamente ao dono daquela voz.
‘Existe a Imagem Verdadeira!’, respondeu nitidamente a voz.
‘A imagem do nada, é a Imagem Verdadeira? O nulo, é a Imagem Verdadeira?, perguntei eu.
‘A imagem do nada não é a Imagem Verdadeira. O vazio não é a Imagem Verdadeira. O que é vazio é vazio é fenômeno. Os cinco elementos que podes perceber – o corpo, a sensibilidade, a imaginação, o trabalho mental e o conhecimento -, é o vazio’. […]
‘Então, que é a Imagem Verdadeira?’, perguntei. ‘A Imagem Verdadeira é Deus. O que existe é unicamente a Mente de Deus. Isso é a Imagem Verdadeira’. O que é dito Deus, evidentemente englobava também o significado de Buda (Liberto). […] Agora, aqui ressuscita a Vida que vive eternamente. É agora! É já! É o agora eterno! Agora é a ressurreição! Vive tu o agora!”. (grifos do autor).
O recebimento desta revelação representou para Taniguchi o seu “despertar espiritual” ou o momento em que realmente ele recebeu a missão de trazê-la à tona. Após se debruçar sobre a mensagem, e identificá-la como de origem divina, Taniguchi reúne seus escritos e descobertas religiosas a fim de publicá-los. Ele acreditava que as revelações recebidas, num total de 33, eram provenientes do deus Sumiyoshi, de origem xintoísta ou seu correspondente Amidabutsu, divindade budista. Em referência a esta divindade especificamente, Taniguchi apresenta que Amidabutsu reúne três outras divindades, sendo Amida, Kannon que tem ação da misericórdia e Seishi, com ação da sabedoria. A escolha por Masaharu, por parte da divindade, e não de outros líderes religiosos, se deveria, ainda segundo ele, ao fato deles não terem divulgado corretamente essa mensagem.
No Japão, o registro oficial da Seicho-No-Ie e o ato de reconhecimento pelo governo japonês como entidade religiosa ocorreu somente em 1935, quando lhe foi atribuído o caráter de “cura milagrosa”. Posteriormente, Taniguchi reuniu seus principais artigos da revista Seicho-No-Ie e publicou o livro A Verdade da Vida, composto hoje por 40 volumes e que constitui a principal obra doutrinária da instituição. Masaharu Taniguchi escreveu mais de 400 livros sob inspiração divina, como argumentava, que dão suporte ao estilo sincrético de viver da Seicho-No-Ie, sem deixar de ser uma forma religiosa de acompanhar as mudanças sociais e culturais. Para Taniguchi “o homem virtuoso adapta-se as circunstâncias” e este caráter versátil lhe é atribuído até hoje, assim como o seu reflexo se faz presente na instituição que fundou e administrou por 55 anos.
A Doutrina
A doutrina formulada por Taniguchi se fundamenta em três princípios básicos: o homem é filho de Deus e originalmente isento de pecado; o mundo fenomênico é sombra (produto) da mente; e todas as religiões emanam de um único Deus Universal. Denominando-se como não-sectarista a Seicho-No-Ie despreza uma única forma de identificação, visto que na compreensão difundida pelo fundador ela poderia ser classificada como religião ou filosofia. O que realmente importava para Masaharu Taniguchi, e também para seus adeptos atualmente, é o caráter único da Seicho-No-Ie. De acordo com o Mestre, como o fundador é conhecido, somente é possível conhecer uma religião praticando seus ensinamentos, mesmo que eles se baseiem essencialmente no Xintoísmo, Budismo e Cristianismo. Contudo muitos adeptos classificam a Seicho-No-Ie como uma religião por excelência, visto que o papel de “re-ligar” o homem a Deus é o objetivo maior dos ensinamentos do fundador. Independentemente de classificar a Seicho-No-Ie como religião ou filosofia de vida, para os adeptos e também para a instituição o mais importante é, conforme mensagem no site da instituição: “[…] despertar no coração das pessoas a verdade de que todos são filhos de Deus e fazer com que, através de atos, palavras e pensamentos, tornemos este mundo um mundo melhor que permite ao indivíduo uma melhor prática de sua religião de origem”.
A Seicho-No-Ie no Brasil
Trabalhando arduamente na lavoura do café, esses imigrantes resumiam sua religiosidade no culto aos antepassados, praticado como tradição cultural. Em 1933 o livro Seimei no Jissô (A Verdade da Vida) é recebido pelo lavrador Daijiro Matsuda, que acredita estar curado de sua desinteria amebiana após a leitura do livro. Desde então, as publicações da Seicho-No-Ie têm sido distribuídas pelos adeptos como forma de divulgação doutrinária, em continuidade ao trabalho missionário iniciado pelos irmãos Matsuda.
Nos anos 60, a divulgação da Seicho-No-Ie ultrapassa as fronteiras simbólicas da colônia, e inicia em sua integração adeptos brasileiros não descendentes de japoneses. Sendo assim a Seicho-No-Ie começa um processo de aculturação e assimilação, juntamente com seus líderes e membros da colônia japonesa. Atualmente a Seicho-No-Ie se constitui a segunda maior religião japonesa no Brasil, de acordo com o Censo, realizado pelo IBGE, é a única dessa categoria que possui um programa na tv aberta em âmbito nacional. Seus calendários de parede e posteriormente os de mesa com mensagens espirituais de autoria de Masaharu Taniguchi podem ser encontrados em estabelecimentos comerciais, repartições públicas e empresas comerciais de diversos segmentos.
A Seicho-No-Ie está hoje presente em todo o país sendo sua Sede Central no bairro do Jabaquara em SP além das sete Academias de Treinamento Espiritual localizadas em Ibiúna (SP), Santa Fé (BA), Santa Tecla (RS), Curitiba (PR), Amazônia (PA), Goiás (GO) e Minas Gerais (MG). Possui também associações regionais e locais que totalizam mais de 3.000 em todo o território nacional. A reuniões são realizadas em português e em alguns locais, dependendo da quantidade de imigrantes, há cultos em japonês também.
Devido ser uma doutrina bem sincrética, não há restrição de pessoas e sua integração a crença atual do adepto é bem aceita. Sendo assim, frequentemente vemos pessoas que praticam a Seicho-No-Ie e quando são questionadas sobre sua pertença religiosa, dizem-se membros de outra instituição. Isso foi um problema para a Igreja no Brasil que a partir de 2000 passou a incentivar os membros a se declararem como “membros da religião SeichoNo-Ie”.
No próximo texto, conheceremos um pouco da Igreja Messiânica Mundial e seu messias Meishu-Sama, que menos sincrética que a Seicho-No-Ie, traz uma perspectiva e práticas mais revolucionárias e ambiciosas.