“Umbanda é casa de Caboclo e Nego Véio. Exu é apenas convidado, não é dono.” – Seu Neguinho (José Libório Gonçalves)
Sempre que falamos de esquerda já começamos com a ressalva de que é um assunto complicado, cheio de dogmas e com muitos conceitos deturpados. Muitos de nós, nem sequer sabemos para que serve esse lado do astral, outros julgam que não se deve trabalhar com as sombras. De qualquer maneira, não devemos ser omissos ou temer gerar algum tipo de atrito e não falar a verdade. Como dizia Allan Kardec:
“Mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única teoria falsa.”
Vamos então analisar a figura de Exu dentro da Umbanda – segundo a tradição e a forma popularizada pelas novas vertentes umbandistas e neo-umbandistas. Convido a todos a despir-se do velho preconceito e abrir a mente para novas (na verdade antigas) informações.
Quero primeiro definir o que é a tradição: Tradição é um conjunto de hábitos, costumes e práticas que foram testados por diversas pessoas antes de você. Ela é o caminho seguro, pois se algo deu errado ou foi ruim, tenha certeza que foi descartado e não faz parte do corpo tradicional. Então, a Umbanda Tradicional, têm em suas práticas, metodologias já reproduzidas a exaustão por todos aqueles que vieram antes de nós dentro da liturgia umbandista. Quem se queimou, sabe como doí e já deixou o aviso sobre isso.
Porém, muitas pessoas com pensamentos mais progressistas, acham que devemos simplesmente abandonar a tradição e esquecer o que os antigos falavam, simplesmente porque julgam que eles não tinham conhecimento sobre o assunto. Também colocam a alcunha de preconceituosos e de mentes subvertidas pela dogma judaíco-cristão. Inventam tanta coisa, que realmente a gente acaba acreditando que tudo é permitido, que tudo é possível. Isso não é Umbanda… isso é magia do Caos. A Umbanda têm fundamentos muito bem definidos – não é preciso buscar informações em nenhuma outra religião – e também não se empresta de explicações alheias. Precisamos avaliar a Umbanda, usando sim material de apoio de forma COMPARATIVA de outras religiões, mas dentro da ótica umbandista e da prática de terreiro. Muitos neo-umbandistas creem que basta alguns cursos, alguns livros e alguns certificados e já estão aptos a ditar as regras da sociedade umbandista. Não é assim, Umbanda sempre foi “pé-no-terreiro”, sempre foi PRÁTICA da caridade, não teoria da caridade.
A frase que abre esse texto, do seu Neguinho, pai de santo já desencarnado que atuava na região de Minas Gerais, causou estranheza em muitas pessoas já. Porém, será que ele está errado? Na composição inicial da Umbanda, levando em consideração sua fundação pelo Caboclo das 7 Encruzilhadas, quem se manifestou foi um Caboclo, posteriormente um Preto-Velho e não Exu. Zélio temia trabalhar com Exu, como podemos ver no trecho abaixo, retirado de uma entrevista realizada em 1961:
SOBRE O TRABALHO COM EXÚS NA LINHA BRANCA DE UMBANDA
Sr. Carlos – Sr. Zélio, eu gostaria de fazer uma pergunta. É sobre o trabalho dos Exús. Tem Tendas que dão consultas com Exús em dias especiais além das consultas normais de Pretos Velhos e Caboclos.
Sr. Zélio – “Eu sei disso, que há muitas Tendas que trabalham com Exús. Eu não gosto, não gosto porque é muito fácil se manifestar com Exú, como também na falange das Crianças. Qualquer pessoa médium, um mau médium se manifesta com Exú, mas tem um espírito atrasado ou também, fingindo apenas, é muito fácil. Por isso não gosto e fujo disso. Na minha Tenda, não trabalha com Exú, porque tenho medo”.
D. Lilia Ribeiro – É, mas o senhor não considera o Exú um espírito trabalhador como todos os outros Orixás?
Sr. Zélio – “Depois de despertado, porque o Exú é um espírito que vive nas trevas, e, depois de despertado que ele dá um passo a frente, para sua regeneração, é fácil dele, amanhã trabalhar em benefício dos outros. Aí acredito”.
D. Lilia Ribeiro – Inclusive não haverá casos em que outros Orixás vibrando em outras linhas não possam resolver de imediato alguns problemas de filhos, não será o Exú aí, o mais indicado para resolver, por estar mais perto materialmente, por estar mais afeito aos trabalhos materiais?
Sr. Zélio – “O nosso chefe, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, nos disse, nos ensinou assim, e isso há 60 anos, que um Exú era um trabalhador como na polícia que tem o soldado. O Chefe de polícia não prende, o Delegado não prende, quem prende são os soldados, cumprem ordens dos maiorais, então o Exú é um espírito que se encosta à falange, que eles aproveitam, para fazer o bem, porque cada passo para o bem que ele faz, vai aumentando a sua luz, de maneira que, é despertado, e vai trabalhar, quer dizer, vai pegar, vai seduzir o espírito que está obsedando alguém, então este Exú começa a evoluir. E assim é. Como o Caboclo das Sete Encruzilhadas nos ensinava”.
D. Lilia Ribeiro – De modo que o Exú é um auxiliar e não um empregado do Orixá? Ou vice e versa?
Zélio – “Eu não digo empregado, mas é um espírito que tende a melhorar. Então para ele melhorar, ele vai fazer a caridade junto a essas falanges, correndo em benefício daqueles que estão obsedados, despertando, ajudando a despertar o espírito para afastar do mal que ele estava fazendo, então ele se torna um empregado do Orixá”
(Vide o capítulo 19 – A Linha de Santo – do livro O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda, do escritor e jornalista Leal de Souza para mais detalhes).
Para aqueles mais puristas, que veem a Umbanda como uma evolução (ou dissidência) natural dos Candomblés de Caboclo, devemos lembrar que os mesmos também não trabalhavam com Exus. Eles sempre trabalharam com Caboclos de Pena ou da Mata ou Caboclo de Couro. Exu, não se manifestava. Novamente cito o ótimo livro do Reginaldo Prandi, Encantaria Brasileira – O Livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Esse livro aborda sobre esses assuntos e muito mais e é leitura obrigatória para quem quer saber um pouco mais sobre as origens de vários cultos e religiões brasileiras.
Os mais antigos, depois de Zélio, ao trabalharem com Exu, sempre tiveram cuidado. Essa figura era um tanto quanto diferente do que estamos acostumados a ver hoje. Alguns dizem que eles foram doutrinados e outros dizem que Exu não desce mais. Há ainda quem diga que eles se usam dos médiuns, vestindo uma pele de cordeiro, escondendo assim o lobo que são.
Exu é importante? Extremamente! Com certeza a frase “Sem Exu não se faz nada!” está correta, porém a gente só olha essa frase pelo lado bonitinho, sem prestar atenção que a reflexão pode nos levar a entender que o NADA inclui tanto o bem quanto o mal. Eis o motivo que muitos dos antigos médiuns de Umbanda, respeitavam Exu, tinha reverência pelos mesmos, mas não se dobravam como seus escravos. Infelizmente, esse é um cenário esquecido hoje.
Os médiuns sabiam que determinadas moléstias e demandas eram sim perpetradas por exus. Sabiam também que eles atuavam com o método do escambo, da “paga”, da troca, etc. Assim, se evocavam determinado Exu para fazer algo maligno, o médium sabendo qual era o objetivo da demanda, tinha noção de qual Exu havia sido o causador e oferendava-o de forma correta com a “paga” necessária e o mesmo desistia do intento maligno. Pense pela lógica, ele recebeu o pagamento DUAS vezes. Exus não são éticos! A ética é um recurso da direita, apenas.
Além disto, devemos sempre lembrar que nem todos exus foram figuras com existência humana. Existem diversos encantados, que são forças naturais e que por tal, também não compreendem ou possuem a ética humana e o discernimento entre o bem e o mal, que nós possuímos. Sua realidade é diferente, não é possível julgar isso, pela nossa visão de justiça.
O que vemos hoje é que exu faz tudo, corta demanda, protege o filho e inclusive é um grande amigo e um ser iluminado. Vemos Exus que parecem personagens de literatura adolescente, personagens de RPG ou Super-heróis, além de Cavaleiros Templários e afins. Isso é apenas ilusão, exu é exu e ponto final.
Dentro das ciências ocultistas, quem cuida de exu é a Quimbanda. A mesma que trabalha alinhada com a Umbanda e é uma corrente de suporte, uma linha auxiliar, uma força de trabalho sempre GERENCIADA e COMANDADA pela direita. Quando vêm um exu se manifestar no terreiro, ele está sendo puxado por uma entidade de direita e está sobre a supervisão desta. Cansei de ver isso onde frequento, quando há a necessidade de um trabalho de Exu – coisa que não é tão frequente quanto os neoumbandistas levam a crer – o Caboclo ou Preto-Velho dá a clara ordem do que ele tem que fazer, instruí seu cambone e diz para que não seja feito nada além da “cartilha” que ele acabou de “rezar”.
Na Umbanda tradicional dizemos que o Chefe-de-Coroa é o responsável por permitir que as entidades se manifestem mediunicamente. Ele realmente é o DONO da sua mediunidade, sem a permissão dele, ninguém pode usar o aparelho mediúnico ou cavalo. Nem em casos de possessão isso se perde. Caso haja um desequilíbrio desses, com certeza é devido a necessidade e merecimento, além do respeito ao livre-arbítrio. Exu não se manifesta, assim como nenhuma outra entidade, a bel prazer, porque ele quer. As entidades de Umbanda – e no espiritismo também, vide o subtítulo do Livro dos Médiuns – se dá sempre através de evocações, por isso a existência dos pontos-cantados.
Na estrutura da Quimbanda, as coisas são divididas de forma muito similar ao lado da Umbanda. Existem linhas, falanges e sub-falanges. Cada Exu tem uma especialidade e atua em determinado campo. Porém nem todos são entidades que incorporam e o médium não possuí um Exu “para chamar de seu”. Os Exus são entidades que de alguma forma, possuem realmente uma ligação com o médium e com todo o corpo de espíritos que servem juntamente ao médium. Podem ser espíritos que foram resgatados das trevas, podem ser espíritos que foram combatidos pela direita e despertaram para o trabalho na Umbanda. Podem haver diversas motivações, porém eles nunca serão propriedade do médium. Chamar de “cumpadre” é uma forma muito mais agradável para eles, do que chamá-los de guardião, por exemplo. Colocaram essa nomenclatura e então o Exu virou anjo-da-guarda, do dia pra noite. Exu não guarda, Exu é executor. Os verdadeiros guardiões militam na linha de Ogum, do lado direito.
Esse texto já está muito extenso e vou fechando o assunto, temporariamente. Sei que o mesmo pode gerar muito atrito, pode gerar incomodo e inclusive causar alguma discussão. Isso é comum, já estou acostumado e sei que ocorre toda vez que as estruturas de crença de alguém são abaladas. Porém, o tempo é um Sábio, que conforme passa, as coisas vão se assentando. Hoje posso dizer que muitos dos que me enviaram os piores tipos de emanações possíveis, com refutações pautadas na repetição de textos escritos, pararam pra pensar e viram certa coerência nesse discurso que eu defendo. Assim como os Exus, um dia perceberam que poderiam ganhar mais tanto na Quimbanda, quanto na Umbanda. Então, Saravá a Umbanda e Saravá a Quimbanda.
Leituras complementares: