No dia 08 de Dezembro é comum para muitos da região sudeste do país, comemorar o dia de Iemanjá. Nessa comemoração, muitas pessoas e terreiros vão as praias – principalmente a Praia Grande, onde há uma grande estátua representando a Orixá dos mares – para saudar as forças e também para encerrar o ano de seus terreiros.

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Curiosamente, nessa data de celebração, muitos levantam as bandeiras demagógicas para explorar a diferença e a multiculturalidade dos cultos umbandistas, acusando a aqueles que trabalham com as forças de Iemanjá nessa data de não entendimento da religião, de deturpação e de apropriação do culto, pois a data de 08 de dezembro é para se comemorar Oxum.

Justamente, por isso, eu decidi escrever esse texto, pois a “falta de informação” leva a essas deturpações e depois as pessoas tomam isso como verdades absolutas. Em uma era de polarização e de criação de vários “experts” de tudo, temos que tomar muito cuidado com as posições que tomamos, para não levarmos pedradas. Porém, quem me acompanha sabe que gosto de uma polêmica.

Mas afinal, dia 08 de dezembro é dia de Oxum ou de Iemanjá? A resposta é:

De nenhuma delas! Dia 08 de Dezembro é dia de Nossa Senhora da Conceição.

Alguns vão articular dizendo que Nossa Senhora da Conceição é Oxum, portanto seria dia de Oxum. Isso é apenas devaneio ou repetição de “frase pronta” sem usar o raciocínio. Oxum é Oxum e Nossa Senhora da Conceição é Nossa Senhora da Conceição. São entidades diferentes, que acessam o mesmo poder, sephira, pote, axé, etc. O Sincretismo não é a absorção de uma entidade pela outra, quase uma antropofagia religiosa e mística. Sincretismo é a aproximação de culturas de forma comparativa ou muitas vezes reinterpretada, como é o caso do Jesus Católico com traços europeus. Jesus era judeu e portanto tinha os traços do povo da região, mas nós insistimos que ele se parece com um Apolo romanizado.

O mesmo ocorre para os Orixás e Santos, são representações diversas que acessam o mesmo domínio da criação, contudo, dentro da Umbanda a interpretação é ainda mais diversa, pois na religião brasileira espiritualista de Umbanda, não há a presença do Orixá Africano, mas de um Orixá abrasileirado, com características próprias – que muitos, maldosamente, dizem que é embranquecido – que foi assimilado nas práticas umbandistas, reinterpretado e trabalhado com a força dos encantados e santos.

As pessoas usam da prerrogativa de dizer que Iemanjá é Nossa Senhora dos Navegantes, portanto seria comemorada sua data em 02 de fevereiro. Outros dizem que Oxum é Nossa Senhora da Conceição, e sua data comemorativa é 08 de dezembro. Porém, eu digo que dentro da Umbanda, Iemanjá não foi associada a uma Nossa Senhora em específico, mas sim a Virgem Maria ou a Santa Maria. Basta ler o livro de Leal de Souza, para compreender isso.

Também, se usarmos um pouco de bom senso, veremos essa clara definição, pois a Virgem Maria é a emanação da vida para a cultura católica, dando vida ao próprio deus encarnado. Logo, a associação a Iemanjá é plena, pois Iemanjá é a deusa de toda a vida.

Dentro da cultura católica também, há de se entender que as muitas “Nossas Senhoras” são na verdade manifestações diversas da mesma entidade, que é a Virgem ou Santa Maria. Desta forma, todas as Nossas Senhoras são unas, ou seja, a mesma individualidade ou “pessoa”. Então, tanto faz comemorar em 02 de fevereiro, 08 de dezembro e até mesmo 12 de outubro, pois também associamos Oxum a data da padroeira do Brasil, a Nossa Senhora Aparecida da Conceição.

Aos puristas quero lembrar que a própria orixá Iemanjá pensada aqui no Brasil, é bem diferente da Orixá original lá da África, de origem nagô. Na África, o Orixá dos mares – se podemos assim definir – é Olokum. Esse é um orixá muito esquecido no Novo Mundo, que alguns associam ao pai de Iemanjá e representam ele em terras americanas como o regente do fundo dos mares. Essa é uma alusão clara aos escaninhos mais profundos da mente humana, o inconsciente. Aquilo que os próprios Bantus chamavam de Kalunga, ou seja, o abismo, o fundo, o poço, onde reside o mistério final. Desta forma podemos até justificar o termo Kalunga Grande para o mar, porém, vejam, não tem muito a ver com Iemanjá, mas ao aspecto do pai de Iemanjá. (Claro que aqui dei uma misturada em cultura bantu e cultura nagô, mas não é assim que o brasileiro faz? Isso é para tentarmos entender a origem das coisas, num esforço imaginativo).

Segundo Pierre “Fatumbi” Verger, um estudioso francês das práticas de Candomblé do Brasil, Iemanjá deriva do nome Yèyé omo ejá, que significaria “Mãe cujo filhos são peixes, ou como peixes”. Seria a regente de uma nação Yorubá estabelecida entre as Ifé e Ibadan, onde existe um rio de nome Yemojá. Porém o povo de Egbá, devido a guerra migrou para oeste, para a região de Abeokutá, no início do século XIX. Segundo Verger:

“Evidentemente, não lhes foi possível levar o rio, mas, em contrapartida, transportaram consigo os objetos sagrados, suportes do àsé da divindade, e o rio Ògùn, que atravessa a região, tornou-se, a partir de então, a nova morada de iemanjá. Este rio Ògùn não deve, entretanto, ser confundido com Ògún, o deus do ferro e dos ferreiros, contrariamente à opinião de numerosos autores que escreveram sobre o assunto no fim do século passado.”

Ainda segundo Verger, os fiéis de Iemanjá procuram buscar a “água sagrada” para lavar seus axés (aqui como sinônimo de objetos de poder), próximo a uma fonte do rio Lakaxa. Aqui vemos que a água usada é uma água doce, o que mais uma vez vai na contramão dos puristas e detentores da verdade absoluta da deusa dos mares, ser a dona das águas salgadas.

Dentro das minhas práticas umbandistas, o mito Iemanjá, é interpretado como o mistério de todas as águas, ou seja, ela regeria qualquer corpo hídrico, sendo água doce ou salgada, salobra ou em movimento. Sendo que Oxum e Nanã estariam albergadas dentro do mistério de  Iemanjá, em nossa visão umbandista e ocidental.

Verger explica uma das possíveis associações de Iemanjá com o mar no trecho a seguir:

Iemanjá, cansada de sua permanência em Ifé, foge mais tarde em direção ao Oeste. Outrora, Olóòkun lhe havia dado, por medida de precaução, uma garrafa contendo um preparado, pois ” não se sabe jamais o que pode acontecer amanhã “, com a recomendação de quebrá-la no chão em caso de extremo. E assim, Iemanjá foi instalar-se no”Entardecer-da-Terra”, o Oeste. Olofin-Odùduà, rei de Ifé, lançou seu exército à procura da sua mulher. Cercada, Iemanjá, em vez de se deixar prender e ser conduzida de volta a Ifé, quebrou a garrafa, segundo as instruções recebidas. Um rio criou-se na mesma hora, levando-a para Òkun, o oceano, lugar de residência de Olóòkun (Olokum). 

Ainda destaco o próximo excerto do texto de Verger, onde ele explica parte da associação sincrética de Iemanjá com santas católicas:

No Brasil, Iemanjá é sincretizada com Nossa Senhora da Imaculada Conceição, festejada no dia 8 de dezembro, e, em cuba, com a Santa Virgem de Regla, festejada no dia 8 de setembro. Nesses dois países ela é mais ligada às águas salgadas, porém, as pessoas fazem abstração, na Bahia, do sincretismo que liga Oxum a Nossa Senhora das Candeias, festejada no dia 2 de fevereiro, pois é nesta data que se organiza um solene presente para Iemanjá. Isso mostra que o sincretismo entre os deuses africanos e os santos da Igreja Católica não é de uma rigidez e de um rigor absoluto. 

A festa do dia 2 de fevereiro é uma das mais populares do ano, atraindo à praia do Rio Vermelho uma multidão imensa de fiéis e de admiradores de Mãe das Águas. Iemanjá é freqüentemente representada sob a forma latinizada de uma sereia, com longos cabelos soltos ao vento. Chamam-na, também, Dona Janaína ou, mesmo, Princesa ou Rainha do Mar. 

Conclusão

Seja como for, não importa a divindade associada e muito menos a data organizada para suas comemorações, devemos entender que tudo se trata de uma adaptação e aproximação de práticas ancestrais. Nunca conseguiríamos voltar as origens, visto que o próprio povo que cultuava Iemanjá tradicionalmente, se viu na necessidade de transferir o seu culto e seu local de poder, levando consigo sua deidade.

O entendimento sem paixões das religiões e das mitologias é importante no entendimento da própria religião. Quando seguimos apenas por pensamento de religiosos, estamos limitando nossas visões. Devemos entender todo o aspecto sócio-antropológico, cultural e principalmente popular entre os mitos. Lembrando sempre que os mitos são originários de povos, esses com anseios, expectativas e necessidades diversas, que criaram o mito ou foram criados pelo mito.

Compreender a forma de pensamento da origem é compreender a própria cultura, porém sendo incapaz de se reproduzir como no original, mas pelo menos se aproximando e compreendendo o pensamento daqueles que já se foram, dos ancestrais. Abra a sua mente para a pesquisa acadêmica, para  pesquisa de campo e para a confrontação dos relatos populares. Não assuma como verdade o que a mídia ou as redes sociais compartilham. O mistério da fé é muito mais complexo e fascinante do que tentam demonstrar aí em simplificações baratas e sem qualquer teor místico.

Sendo assim, como paulista, eu deixo aqui meus cumprimentos a rainha do mar, mãe Iemanjá. Odoyá, minha mãe, Odoyá!


Fonte: Orixás; Pierre “Fatumbi” Verger; Editora Currupio

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