Quando falamos de algo doméstico, podemos ter a noção – errada – de se tratarem de criaturas domesticadas, dóceis e afáveis. Porém, essa é apenas uma das muitas interpretações da palavra doméstico, no caso podendo também significar, algo que vive ou habita uma residência ou lar. Podemos encontrar em diversas mitologia o exemplo de divindades consideradas domésticas, ou seja, pertencentes a uma família e só cultuadas por essa, assim como espíritos e entidades sobrenaturais diversas.

Estatueta de um dos Lares.

Na mitologia romana, encontramos os Lares e os Penates, que são tipos de divindades que protegem a família romana. São duas estruturas diferentes de divindades, mas que são geralmente adorados ou cultuados em um altar compartilhado e são uma das heranças da cultura etrusca em meio ao povo romano.

As divindades Lares, são tidas como espíritos desencarnados, que guardam as casas, as encruzilhadas e a cidade. Lembram, desta forma, pelos locais que guardam, os exus que militam na Umbanda. Dentre as histórias que conseguiram sobreviver ao tempo, é dito que cada família romana possuía seu próprio guardião, conhecido como Lar Familiaris, que protegia a casa e também garantia que a linhagem sanguínea de uma família não se extinguisse. Os romanos cultuavam essas divindades diariamente, sempre pela manhã, orando para elas e fazendo oferendas em seus altares, que continham imagens representando o Lar Familiaris, daquela família. Basicamente esse altar, lembra muito um assentamento ou uma Nganga, onde é tido que o espírito do Lar Familiares é mantido ou está “preso” àquele altar familiar.

Ainda entre os Lares, existia uma categoria chamada de Lares Compitales, que eram responsáveis por guardar as encruzilhadas e a vizinhança. Esses espíritos eram homenageados quatro vezes no ano em um festival conhecido como Compitália ou Jogos Compitalícios. Ainda podemos encontrar uma categoria denominada de Lares Praestites, que eram responsáveis pela guarda de toda a cidade de Roma.

Já os Penates, eram originalmente homenageados e tidos como deuses da despensa, algumas vezes estendendo seus domínios para a manutenção e proteção de toda a residência e não só a despensa. São associados diretamente com Vesta, que era a deusa do fogo domesticado e também tida como sagrada em todas as lareiras e fogaréus de uma casa. A principal função dessas divindades, os Penates, era de garantir o bem-estar e a prosperidade da família. Em todas as refeições da família, uma oferenda era feita aos Penates, lançando uma porção de comida na fogueira ou lareira central da casa. Uma tradição que sobreviveu ao tempo, mudando de formato, ao oferendar o primeiro café do dia a Santo Antônio ou São Benedito para que não falte alimento ou até mesmo dedicar o primeiro gole de cachaça ao santo, derramando um pouco no chão.

Também era comum, tanto aos Lares, quanto aos Penates, oferendarem coroas de flores, bolos, mel, vinho, incenso e até mesmo carne de porco em festividades e ocasiões especiais, como aniversários, casamentos e também depois de empreender uma longa viagem. Esta era uma forma de agradecimento pelo retorno seguro e pela proteção da casa e da família, muitos dos Lares eram vistos como ancestrais e podemos notar as estatuetas presentes até mesmo no filme Gladiador, com Russel Crowe.

 Espíritos Familiares

“A palavra ‘familiar’ é do latim familiaris, o que significa ‘servo doméstico’ e destina-se a expressar a ideia de que os feiticeiros tinham espíritos como seus servos prontos a obedecer aos seus comandos.”1

O que algumas pessoas podem confundir é a ideia de espíritos familiares e também de familiares mágicos, comumente vistos em filmes e na literatura fantástica, quando se diz respeito a magos e feiticeiros de outrora. Acreditava-se que esses familiares, tomavam formas de animais – geralmente sapos, corvos, serpentes e gatos – porém não se tratavam dos próprios animais, mas versões sobrenaturais dos mesmos ou espíritos que apenas plasmavam suas aparências assim. Ainda, esses familiares serviam como um apêndice remoto do mago ou feiticeiro, podendo atuar e se comunicar pelo pensamento com o seu mestre, ou seja, caso o mago tivesse que “enfeitiçar2” alguém e precisasse de recolher objetos desses, tais como cabelo, unhas, saliva, sémen, sangue menstrual, etc; ele poderia enviar o seu familiar para tal função. Também poderia fazer com que o último toque da magia, para magias que precisam de contato físico ocorresse por intermédio deste familiar, ele lançava o feitiço no familiar e esse tocava na pessoa, enquanto elas estavam distraídas ou dormindo. A pessoa caso notasse o animal, acreditaria se tratar apenas de um animal. Porém, essa é a mitologia que tomou forma para encerrar o que realmente são os familiares, que eram animais normais ou encantados sobrenaturais (não-éticos ou inferiores) conjurados para propósitos mágicos (na maioria das vezes escusos). Contudo, em nada tem a ver com os espíritos familiares, com os deuses lares e afins.

Allan Kardec, no Livro dos Espíritos, nos elucida sobre essa questão contando com o concurso dos espíritos superiores que orientaram a codificação espírita. Fica claro nas questões do capítulo 9, tópico VI – Anjos da Guarda, Espíritos Protetores, Familiares ou Simpáticos, de se tratarem de espíritos que têm afinidade com o encarnado e servem como protetores deste ser humano. Destaco algumas perguntas abaixo:

489.  Há Espíritos que se ligam a um indivíduo em particular para o proteger?

       — Sim, o irmão espiritual; é o que chamais o bom Espírito ou o bom gênio.

  1. Que se deve entender por anjo da guarda?

      — O Espírito protetor de uma ordem elevada.

  1. Qual a missão do Espírito protetor?

      — A de um pai para com os filhos: conduzir o seu protegido pelo bom caminho, ajudá-lo com os seus conselhos, consolá-lo nas suas aflições sustentar sua coragem nas provas da vida.

  1. O Espírito protetor é ligado ao indivíduo desde o seu nascimento?

      — Desde o nascimento até a morte, e freqüentemente o segue depois da morte, na vida espírita, e mesmo através de numerosas experiências corpóreas porque essas existências não são mais do que fases bem curtas da vida doEspírito.

  1. A missão do Espírito protetor é voluntária ou obrigatória?

      — O Espírito é obrigado a velar por vós porque aceitou essa tarefa mas pode escolher os seres que lhe são simpáticos. Para uns, isso é um prazer; para outros, uma missão ou um dever.

      493 – a) Ligando-se a uma pessoa, o Espírito renuncia a proteger outros

indivíduos?

      — Não, mas o faz de maneira mais geral.

  1. O Espírito protetor está fatalmente ligado ao ser que foi confiado à sua guarda?

     —Acontece freqüentemente que certos Espíritos deixam sua posição pura cumprir diversas missões, mas nesse caso são substituídos.

Então podemos concluir que os Lares de outrora são possivelmente os espíritos dos desencarnados que zelam pelos seus familiares ou pelos que se simpatizam. Podemos ver isso mais claramente na pergunta de número 514, do mesmo capítulo do Livro dos Espíritos:

514. Os Espíritos familiares são a mesma coisa que os Espíritos Simpáticos ou os Espíritos protetores?

       — Há muitas gradações na proteção e na simpatia. Dai-lhes os nomes que quiserdes. O Espírito familiar é antes de tudo o amigo da casa.
Comentário de Kardec: Das explicações acima e das observações feitas sobre a natureza dos Espíritos que se ligam ao homem podemos deduzir o seguinte:
       O Espírito protetor, anjo da guarda ou bom gênio, é aquele que tem por missão seguir o homem na vida e o ajudar a progredir. É sempre de uma natureza superior à do protegido.
       Os Espíritos familiares se ligam a certas pessoas por meio de laços mais ou menos duráveis, com o fim de ajudá-las na medida de seu poder, freqüentemente bastante limitado. São bons, mas às vezes pouco adiantados e mesmo levianos, ocupam-se voluntariamente de pormenores da vida íntima e só agem por ordem ou com permissão dos Espíritos protetores.
       Os Espíritos simpáticos são os que atraímos a nós por afeições particulares e uma certa semelhança de gostos e de sentimentos, tanto no bem como no mal. A duração de suas relações é quase sempre subordinada às circunstâncias.
      O mau gênio é um Espírito imperfeito ou perverso que se liga ao homem com o fim de o desviar do bem, mas age pelo seu próprio impulso e não em virtude de  uma missão. Sua tenacidade está na razão do acesso mais fácil ou mais difícil que encontre. O homem é sempre livre de ouvir a sua voz ou de a repelir.

Allan Kardec nos deixa claro em seu comentário que nem sempre os Espíritos Familiares são de grau evolutivo (moral e intelectual) avançados, mas que geralmente são bons ou inclinados ao bem. Mas que alguns espíritos simpáticos, ou seja, aqueles que se afinizam por nossas vibrações, que provêm do nosso estilo de vida e de nossos pensamentos, podem ser levianos, malignos e perversos. Por isso devemos tomar cuidado com as evocações e sempre trabalhar nossa reforma íntima.

Mitologia ao redor do mundo.

A Mundo Estranho, certa vez publicou um TOP 10 de espíritos que habitam as casas e os lares. Aqui irei tentar expandir um pouco mais sobre o que eles falaram nessa listagem, mas não vou citar todos, apenas dois: O Clurichaun e o Demovoi.  Essa é uma reflexão sobre entidades encantadas que podemos utilizar para expandir o pensamento e raciocinar em cima da mitologia

ClurichaunClurichaun (Irlanda)

São espíritos considerados pertencentes ao povo feérico, ou seja, são fadas irlandesas, que são parentes dos leprechauns. Alguns folcloristas até mesmo representam os Clurichaun como leprechauns em formas mais soturnas e notívagas, outros até mesmo dizem se tratar da mesma entidade, porém “vestidos” de noite, ou transmutados pela noite. São espíritos com fama de beberrões, porém só bebem a noite. O folclorista Nicholas O’Kearney, descreve essas entidades assim:

“The Clobhari-ceann (Clurichaun) são outro tipo de criatura da mesma classe: São alegres, com rostos avermelhados, bêbados, e são encontrados geralmente nas adegas, lembram o deus Baco, montado nas barricas de vinho, são encontrados com uma caneca de bebida (não especificou a bebida), bebendo e cantando. Todas as adegas que são assombradas por esse duende,  estão condenadas a trazer ruína ao seu dono.”

São tidos como duendes grosseiros, bêbados e muitas fábulas sobre esses seres dizem que os mesmos gostam de montar em ovelhas e cachorras, durante a noite. Se você os tratar bem, eles irão proteger sua adega, mas se maltratados, eles irão atrair problemas, arruinando a residência e a adega de vinhos.

Domovoi

Domovoi (Rússia)

O Domovoi é um espírito doméstico do folclore russo, mas também pode ser encontrado em histórias na Polônia, que geralmente vivem no batente da porta de entrada, embaixo do forno ou no sótão de uma residência. Dizem que ele lembra um homem baixo e extremamente peludo, porém dizem que ele pode se metamorfosear e tomar a aparência do atual dono da residência. Existem histórias que dizem que era comum ver o vizinho arando o quintal ou trabalhando na terra, enquanto na verdade ele estava dormindo em sua cama. Ainda é dito que o Domovoi pode se transformar em cachorro, cobra ou em um gato.

Apesar da grande quantidade de relatos, o Domovoi é tímido para mostrar sua real aparência, muitas vezes se faz notar por batidas e estalos, assim como por movimentos em objetos inanimados e também mudando coisas de lugar. Alguns dizem, de acordo com as lendas, que o Domovoi é um anunciante de que uma morte ocorrerá em um futuro próximo. Deixando de lado essa questão da profecia, suas atividades de mover objetos e também de dar estalos e batidas na madeira é muito similar as manifestações espirituais dos salões parisienses do século XIX, que deram origem a codificação espírita e a doutrina dos espíritos.

As pessoas tentavam ganhar favores do Domovoi de suas casas, por meio de oferendas, tais como deixar leite e biscoitos ou pão na cozinha a noite. Quando se mudavam para uma nova casa, eles convidavam o Domovoi para se mudarem com eles, pois acreditavam que a presença do Domovoi trazia muitos benefícios para eles.

O Demovoi quando feliz é um aliado. Um espírito que está satisfeito e com um bom relacionamento com os membros de uma residência atua como guardião da casa, ajudando com as tarefas domésticas, alimentando os animais e protegendo a residência contra ladrões. Também costumam arrumar cômodos, que não estejam muito bagunçados, quando ninguém está de olho. Favorece as plantas, deixando-as saudáveis, mesmo com a ausência de água e também protege contra intrusos, pregando peças nos mesmos. Porém essas entidades desejam respeito e querem ser bem tratadas, não toleram pessoas preguiçosas ou rudes. Palavrões e linguajar inapropriado, assim como comportamentos desrespeitosos, podem deixar o Domovoi nervoso e ele poderá se virar contra a família.

Quando um Domovoi está zangado com uma família é possível que aconteçam manifestações sobrenaturais, tais como batidas de porta, objetos voando pelo ar assim que a noite começa e perturbações. Pode ainda piorar com a morte de todas as criações e também das plantações, podendo chegar ao ponto de sufocar os moradores da residência enquanto dormem.

Conclusão

Seja como for, vemos figuras similares em diversas mitologias ao redor do mundo e devemos manter a percepção sempre aberta. Muitos atribuem significados pejorativos a palavras como folclore e mitologia, chegando a taxar de crendice ou superstição, mas sabemos que existem mistérios no Universo e que existem muitos habitantes fantásticos, que conhecemos como encantados no Brasil, mas que podem muito bem ser essas figuras fantásticas.

Mesmo que você não acredite nisso de forma mais “mágica”, tente enxergar isso como um processo sociocultural humano e também uma compreensão de como a mente humana, as relações familiares e a necessidade de manter a casa de forma organizada acontece, assim como uma explicação para eventos que ocorrem nas residências de milhões, até hoje, que a nossa ciência ainda não conseguiu explicar de forma definitiva.


1 Extraído de https://gotquestions.org/Portugues/espiritos-familiares.html
2 Enfeitiçar, magiar, encantar, conjurar, praguejar, maldizer, agouro, cruzar, jogar uma maldição, fazer um “hex magic”.

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