Por André Caboclo

Olá. Meu nome é Antônio, mas todo mundo me chama de Tony. Estou escrevendo estas linhas mediante uma recomendação Superior. O que irei relatar aqui é parte da minha história e espero que, ao conhecer um pouco sobre mim, você possa refletir alguns instantes sobre a sua própria vida. Se isso acontecer, então a criação deste texto terá valido à pena.

            Tive uma vida absolutamente comum de um garoto interiorano até 1988, quando, aos 14 anos, sofri um grave acidente automobilístico que me fez ficar quarenta dias internado em um hospital da capital, quatro destes em estado de coma. A lesão mais grave foi no meu joelho direito, que ficou tão danificado a ponto de os médicos cogitarem amputar a minha perna. Felizmente isso não foi necessário, mas a minha mobilidade ficou comprometida para sempre. Até hoje caminho mancando bastante e dobrar a perna – para sentar ou deitar – só é possível mediante uma boa dose de esforço e dor.

            Em função disso, nunca mais pude praticar esportes e as minhas amizades e relações sociais passaram a diminuir drasticamente, pois eu tinha vergonha de caminhar mancando e praticamente só saia de casa para ir à escola. Como consequência do sedentarismo, comecei a ganhar peso, o que aumentava a dor no joelho e as dificuldades de locomoção na mesma medida em que diminuía ainda mais a minha autoestima. Hoje eu vejo que aquele período teve pelo menos algo de bom: por falta de opção, acabei me tornando um leitor voraz. Passava a maior parte do dia dentro de casa, lendo desde histórias-em-quadrinhos até tratados filosóficos, passando por romances, livros de História, ciências e o que mais caísse em minhas mãos. Como se eu quisesse compensar minhas limitações físicas através do intelecto, aumentei minha carga de estudos ao ponto de raramente tirar alguma nota nas atividades escolares que não fosse 10. Isso, de certa forma, me reconfortava.

            Em todo caso, o fato é que a minha vida pós-acidente mudou drasticamente também em outro aspecto. Desde o dia em que me acidentei, passei a ter visões estranhas, que, no início, não sabia como interpretar. Na verdade, eu me lembro de já ter tido algo assim em algumas ocasiões mesmo antes do acidente – bem como sonhos esquisitos que às vezes se repetiam por noites consecutivas –, mas é inegável que o negócio se intensificou incrivelmente depois daquele dia fatídico. Vou ser mais específico: eu passei a ver frequentemente um homem de aparência um tanto singular. Era idoso, e sua fisionomia tinha traços claramente indígenas. Seus cabelos grisalhos, lisos e compridos se derramavam sobre seus ombros e realçavam a pele morena do seu semblante sempre sério, e que parecia de alguma forma exalar certa solenidade. Me chamava a atenção o fato de ele vestir roupas “comuns”, apesar de bastante surradas – blusa vermelha, calça verde e desbotada – ao invés de estar coberto com peles e penas, de acordo com o estereótipo indígena que eu estava habituado a ver nos livros escolares. Na verdade, ele me parecia muito mais um mestiço, como aqueles que volta e meia apareciam na região acampando na beira das rodovias, vendendo balaios e artesanatos diversos.

            Desde o primeiro momento ficou claro para mim que se tratava de uma aparição, mas em nenhum momento eu tive medo ou cogitei estar perdendo o juízo. Era justamente o contrário: intuitivamente, eu sentia como se aquele encontro já estivesse fadado a acontecer e que isso teria um propósito definido, embora não tivesse ainda a devida compreensão do que se tratava. Nas primeiras vezes em que apareceu, ainda durante o coma, o Índio Velho nada fazia além de permanecer imóvel e me observar de maneira serena e, de certa forma, afetuosa. Depois que voltei para casa, ele continuou aparecendo ocasionalmente em meus sonhos, ainda que eu só conseguisse guardar uma vaga recordação dessas experiências oníricas.

            Nosso primeiro contato, por assim dizer, mais dinâmico, aconteceu em uma circunstância inesquecível. Era um sábado de noite, eu estava deitado no sofá da sala lendo algo quando o meu pai chegou alvoroçado, dizendo que a Bruna – uma colega de aula por quem eu nutria uma grande simpatia e que morava na mesma rua – havia sido levada às pressas para o hospital, pois havia caído de uma janela do segundo andar da sua casa e estava à beira da morte.

            Eu fiquei muito chocado com a notícia, pois a Bruna era uma menina com o qual eu tinha uma boa afinidade. Ela era tímida, usava óculos “fundo-de-garrafa” enormes, tirava boas notas e não era nada popular na nossa escola. Ou seja, era uma nerd tão esquisita quanto eu, razão pela qual nos entendíamos bem. Pedi para o meu pai me levar ao hospital, mas ele recusou dizendo que ela estava na UTI e que, por ser de noite, não deixariam entrar ninguém além dos familiares. Por outro lado, me assegurou que poderíamos ir até lá na manhã seguinte.

            Naquela noite custei muito a pegar no sono, pois a Bruna não me saia da cabeça. Ela tinha quatro irmãos, dois mais velhos e dois mais novos e, ao contrário dela, que andava sempre calada e meio cabisbaixa, eram agitados e tagarelas, o que às vezes me fazia pensar que ela era uma “estranha no ninho” em relação aos seus próprios familiares. Adormeci pensando que gostaria de estar lá no hospital, ao lado dela.

            Horas mais tarde, acordei de supetão, como se tivesse levado uma espécie de choque. Olhei para o lado da cama e vi o Índio Velho com os braços estendidos em minha direção, e de suas mãos saía uma espécie de névoa esbranquiçada e luminosa que envolvia o meu corpo. Saltei da cama sem entender direito o que estava acontecendo e apenas anos depois, ao estudar a fenomenologia da doutrina espírita, é que compreendi que o espírito estava emitindo energia magnética sobre mim, para auxiliar no desdobramento do meu corpo astral. Mesmo depois de olhar para a cama e observar meu corpo físico adormecido, não tive medo algum, pois novamente uma espécie de intuição me fazia crer que aquilo acontecia por uma razão importante.

            O Índio Velho fez um sinal com a mão e eu o acompanhei. Saímos da minha casa e seguimos pela rua. Percebi que a minha perna não doía e que eu podia caminhar perfeitamente. Minhas lembranças do trajeto não são muito nítidas, mas me recordo de que o céu noturno parecia iluminar-se em algumas circunstâncias por “névoas” coloridas que se deslocavam pelo ar, às vezes emanando de determinadas casas. Lembro também que havia pessoas estranhas zanzando pela rua. Várias pareciam simplesmente não nos ver, enquanto outras nos observavam de forma quase hostil. Ao passar por estes indivíduos, eu percebia que o fluído suave e luminoso que emanava sutilmente do corpo espiritual do Índio Velho me envolvia com mais intensidade, e isso parecia repelir de alguma forma aqueles sujeitos de aparência ameaçadora, que se mantinham afastados.

            De repente, percebi que estávamos diante da casa da Bruna. Chamou-me a atenção o fato de a residência aparentar estar envolvida por uma espécie de fluído que pairava com mais densidade próximo ao teto e as janelas do andar superior, alternado sua cor em tons cinzentos, avermelhados e pretos. O Índio Velho então apontou para o lado esquerdo da rua e eu avistei Bruna se afastando rapidamente. Espantado, gritei seu nome e ela olhou para trás, surpresa.

            – O que você está fazendo aqui?! – perguntou ela, ao me ver se aproximando.

            – Vim falar com você. – respondi, meio inseguro.

            – Quem é ele? – questionou Bruna, olhando para o Índio Velho que permanecia ao meu lado.

            – Ele… É… Um amigo. – expliquei, de forma não muito convincente.

            – O que você queria me dizer? – indagou a menina.

            Nesse instante, uma voz ressoou na minha mente: “diga que ela precisa voltar”. Imediatamente eu entendi que era o meu companheiro espiritual se comunicando telepaticamente.

            – Eu queria dizer para você voltar. – respondi.

            – Não vou voltar nunca mais. – retrucou ela, retomando sua caminhada em seguida.

            – Escute, Bruna – insisti, praticamente correndo atrás dela. – Sei que você sofreu um acidente horrível! A sua família deve estar sofrendo e…

            – Não foi um acidente! – interrompeu ela, com rispidez. – Eu pulei daquela janela!

            – Por quê?! – questionei, me sentindo pasmo.

            – Você quer mesmo saber? – perguntou a menina, com os olhos cheios de lágrimas.

            Eu mal tive tempo de responder “Sim” e quando dei por mim estávamos dentro de um quarto que parecia ficar em um sótão. Imediatamente entendi que estávamos na casa da Bruna, mesmo que ela jamais tivesse me convidado para ir lá anteriormente. As paredes do aposento pareciam envolvidas por aqueles fluídos estranhos que eu havia avistado do lado de fora. Eles pareciam se mover e tomar formas sutis, que se materializavam e em seguida retornavam para o fluxo fluídico novamente. Vi claramente lacraias gigantescas e avermelhadas se movendo pelas paredes, bem como partes de corpos humanos que ganhavam formas bizarras como se reproduzissem versões monstruosas de órgãos genitais. Em dado momento, uma espécie de rosto grotesco ganhou forma através dos fluídos na parede logo atrás de onde Bruna estava, e uma língua enorme fez menção de lamber o rosto da menina, mas sem sucesso.

            Prestes a entrar em pânico, agarrei a mão de Bruna – que parecia não ver aquelas formas horrendas nas paredes – e fiz menção de sair correndo, mas, nesse momento, o Índio Velho estendeu suas mãos e projetou sobre nós uma energia reconfortante, que fez me sentir seguro novamente. “Não olhe para as paredes”, disse a voz do amigo espiritual em minha mente.

            Quando tornei a olhar para Bruna, ela estava retirando uma maleta do fundo de um armário. Abrindo o objeto, a menina despejou todo o seu conteúdo no chão. Eram fotografias. Ajuntei algumas e, tomado de espanto, vi que eram fotos de crianças de várias idades, completamente nuas. Bruna estava em algumas delas.

            – São do meu padrasto… – disse a menina, com lágrimas escorrendo pelo rosto. – Você entende agora?

            Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, o espírito que nos acompanhava falou em minha mente: “Há mais fotos na parte de cima do armário. Pegue-as.” Sem muita dificuldade, tateei entre cobertores dobrados e encontrei uma pequena caixa. As fotos que ali estavam eram de Marcinha, a irmã mais nova de Bruna, que possuía apenas onze anos. Ela não estava nua, mas sim de pijama, dormindo. Porém, os ângulos das fotos – focando claramente a região genital da menina – deixavam claras as intenções do fotógrafo.

            – Sua irmã vai ser a próxima – disse eu, entregando as fotos nas mãos de Bruna – Entende agora porque você não pode ir embora?

            – Sim, entendo – respondeu a menina, ainda chorando, mas com um semblante que esboçava determinação. – Eu vou proteger a minha irmã daquele monstro.

            Se aconteceu algo mais ali depois disso, eu não lembro. A minha memória seguinte é de acordar – já na manhã seguinte – e levantar da cama tão rápido quanto a minha perna permitia e esmurrar a porta do quarto do meu pai implorando para ele me levar ao hospital. Sem entender nada, ele reclamou do meu alvoroço, mas acabou concordando.

            Porém, ao chegarmos ao hospital, percebemos de imediato que algo estranho estava acontecendo. Havia viaturas da polícia estacionadas diante da porta e um vai-e-vem anormal de pessoas entrando e saindo. Meu pai me mandou esperar no carro e foi até a recepção atrás de informações. Retornou alguns minutos depois, com semblante visivelmente perturbado.

            – Vamos embora – disse ele. – A Bruna está sendo transferida para um hospital da capital.

             – Ela piorou?!

            – Não. Na verdade, ela acordou. Saiu do coma. Mas, a mãe dela achou melhor transferi-la.

            – Por quê? O que aconteceu?! – indaguei, cheio de ansiedade, mas o meu pai nada respondeu. Permaneceu calado até em casa, visivelmente abalado com o que ficara sabendo, e achei melhor não insistir.

            Antes do meio-dia a cidade inteira já estava sabendo do acontecido e era só sobre isso que se falava. Bruna havia despertado do coma um pouco antes do amanhecer e, mesmo debilitada, contou a verdade diante da mãe, de médicos e enfermeiros. Com a orientação da menina, o irmão mais velho foi até em casa e encontrou as fotos escondidas no sótão. A família ficou desesperada, a polícia foi chamada e o padrasto foi preso. Na delegacia se soube que, anos antes de se casar com a mãe de Bruna, ele já tinha sido acusado de pedofilia e abuso de menores em duas outras cidades onde havia morado.

            Quanto a Bruna, eu nunca mais a vi e nem tornei a falar com ela. Sei que ela se recuperou – pelo menos fisicamente – e que mora até hoje na capital, para onde a família se transferiu imediatamente após o escândalo vir à tona. Em uma cidade pequena, onde todos se conhecem, não seria fácil conviver com este estigma, pois, apensar de não ter participação nos abusos, a mãe poderia facilmente ser tachada de negligente por não ter percebido o que se passava dentro de sua própria casa.

            Naquela noite, mais uma vez custei a pegar no sono. Rolava de um lado para o outro da cama, rememorando aquela história fantástica que, obviamente, não tive coragem de compartilhar com ninguém, pois se desde sempre eu tivera fama de esquisito, contando algo assim passaria imediatamente para o status de louco. O questionamento que mais me fustigava era: por que eu? “Para que desde cedo você saiba que é possível”, respondeu a voz do Índio Velho ressoando na minha mente, segundo antes de eu finalmente mergulhar em um sono profundo e restaurador.

]]>

%d blogueiros gostam disto: