Escrever sobre uma linha de trabalho, falange ou especificamente um guia é algo muito delicado. Devido aos espíritos que militam nessas linhas serem de origens diferentes, terem vidas distintas, podemos incorrer em diversas contradições e erros. Porém, a análise mais pontual, tentando aprofundar um olhar mais acadêmico sobre o assunto, pode nos trazer informações importantes. Então, longe de querer ser a palavra definitiva, queria exaltar aqui a figura dessa falange, que tenho o orgulho de poder ser intermediário e instrumento.

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O nome Rompe-Mato é bem conhecido dentro da Umbanda, praticamente acompanha-a desde seu surgimento. Inclusive faz aparições em outros cultos como a Jurema e o Catimbó. Dentro da  Umbanda temos duas classes de espíritos que ocupam-se deste nome: O Ogum Rompe-Mato e o Caboclo Rompe-Mato. Às vezes encontramos por aí o nome com a flexão em plural, sendo Rompe-Matos ou Rompe-Matas. Mas trata-se da mesma entidade.

 

Primeiro vamos tentar separar as figuras aqui. O Ogum Rompe-Mato é um dos falangeiros chefes da linha de Ogum, que é composta de: Ogum Beira-Mar, Ogum Rompe-Mato, Ogum Iara, Ogum Malei, Ogum Nagô, Ogum Megê e Ogum Naruê. Já o Caboclo Rompe-Mato é um caboclo de Ogum, que recebe irradiação de Oxóssi, para os antigos é o mesmo que dizer que é um caboclo que trabalha com a força de Ogum, mas faz suas entregas pra Oxóssi.

 

A confusão começa aqui, pois o Ogum Rompe-Mato é um dos poucos Oguns que se apresentam sem a indumentária do soldado romano. Em suas representações iconográficas e imagens ele é visto como um índio montado em um cavalo. O que pode ocorrer também com o caboclo, apesar da sua imagem não ser representada com um cavalo. Mas entendam, são entidades diferentes e nem sempre o médium que carrega um, irá carregar outro.

Seu Ogum Rompe-Mato é o comandante de todos os caboclos que vibram na irradiação de Ogum, seja de qual linhagem for. Se o Caboclo Pena-Azul vier na linhagem de Ogum, irá responder ao Ogum Rompe-Mato. Ainda dentro de suas diferenças na manifestação, é bem comum ver um médium irradiado por um Ogum Rompe-Mato não conseguindo ficar parado em um só lugar, como a maioria dos oguns. Ele sente necessidade de se movimentar, às vezes girar e até mesmo soltar alguma espécie de brado – isso não é comunicação, é apenas um grito de guerra. Suas mãos geralmente ficam fechadas ou com dedos em riste em forma de setas, geralmente usa duas espadas de São Jorge como “ferramenta” de trabalho.

O Caboclo Rompe-Mato é uma entidade que é associada a um povo indígena chamados de Guaicurus, da linhagem guarani. Muitos dizem que além das irradiações de Ogum e Oxóssi, ele acaba recebendo sempre irradiações de Xangô. Podemos então perceber que é um caboclo de grande poder de realização, com dom de cura através do aconselhamento e que possui grande discernimento para resolver questões que necessitem de equilíbrio e harmonia. Essa falange é uma das poucas que não se apresentam como grandes chefes, caciques ou pajés. Mesmo que possam ter sido em encarnações passadas, eles sempre se apresentam mais para guerreiros e desbravadores. Ele é bem conhecido e é cultuado em outros cultos, como afirmamos acima. As cores que o representam é sempre verde, vermelho e branco.

“Vermelho é a cor do Sangue do meu Pai!
E verde é a cor das Matas!

Saravá seu Rompe-Mato na Jurema!
Saravá a Banda em que ele mora!”

Um pouco da história do Povo Guaicuru.

Partindo pra premissa histórica, vamos analisar o povo Guaicuru. Esse povo é considerado o único povoado invicto contra os brancos. Índios temíveis que viviam na região do atual Mato Grosso do Sul. Eram guerreiros natos e sabiam utilizar de cavalos nas guerras. Ao contrário de outros povos indígenas que usavam o arco-e-flecha, o tacape e o bodoque; os índios Guaicurus usavam a lança, uma arma incrível aliada ao poder da cavalaria. Não é preciso dizer que sua predominância perante os outros povos indígenas era indiscutível.

 

Do século 16 ao começo do século 19, nenhum branco, seja português, espanhol ou mestiços já americanos, conseguiram subjugar esse povo. Segundo o Guia do Estudante, da Editora Abril, esses índios só aceitaram as pazes com os europeus, quando quiseram, e dentro dos termos por eles proposto.

Dentro do mito do povo Guaicurú, podemos encontrar a sua origem contada da seguinte forma:

“Os Kadiwéus, contam que Gô-noêno-hôdi, o Criador, tirou todos os povos de um buraco e deu a cada um funções diferentes. Para alguns, ele deu enxadas e estes se tornaram agricultores, para outros deu ferramentas e esses se tornaram artesões, etc. Só que o Criador, acabou se esquecendo do povo Kadiwéus, que foram os últimos a sair do buraco. Desta forma, Gô-noêno-hôdi, permitiu que eles saqueassem os outros povos.”, conta o antropólogo Jaime Garcia Siqueira, do CTI-DF.

Ao contrário de outros povos que faziam agricultura, os Kadiwéus viviam uma vida nômade, caçando, coletando e pilhando as demais tribos. Segundo Jaime Garcia Siqueira, mestre pela USP, ainda diz que há teses que apontam que a origem desse povo pode ter sido a Patagônia argentina, ou mesmo que sua origem é andina.

Os relatos dizem que um dos primeiros contatos com o povo guaicuru foi quando os mesmos mataram o português Aleixo Garcia, nos idos de 1526. O aventureiro estava acompanhado de um exército de índios guaranis, que saquearam vários locais do Império Inca, porém na volta se defrontaram com os temidos guaicurus. O alemão Ulrich Schmidel, mercenário e membro da expedição espanhola que fundou a capital do Paraguai, Assunção, se deparou com eles por volta de 1540. Seus relatos denotam que eles tratavam os demais índios de outras tribos como camponeses, e eles como nobres. Praticamente um sistema feudal, imposto pelo poder militar que os guaicurus possuíam, pois os mesmos também os protegiam contra outras tribos inimigas. (Bem interessante notar isso vindo de uma falange que é atribuída militando na energia de Ogum, o Orixá da Guerra).

E os cavalos? Como eles entraram na história? Parece que foi a partir da incursão do conquistador espanhol Alvar Núñez Cabeza de Vaca. O próprio cita que os índios ficaram aterrorizadas diante dos  bichos, mas não se intimidaram e partiram para uma dissimulação, atearam fogo em suas tendas, confundindo assim a todos. Depois, os invasores foram decapitados com golpes de machado feitos com mandíbulas de piranhas e  usavam a cortina de fumaça para fugir, demonstrando sua engenhosidade para a guerra, segundo está relatado no Guia do Estudante, da Ed. Abril.

A partir daí eles começaram a roubar cavalos para usá-los. Diziam que montavam no pelo (sem sela) e que subiam na montariam com apenas um salto. Adotaram a partir de então a lança, reforçada com a ponta de ferro (mostrando domínios sobre outro elemento de Ogum) e fizeram aliança com o povo paiguás, que dominava os rios da região e eram grandes navegadores. Ou seja, dominaram a terra e a água da região e viraram seus senhores.

Os Guaicurus ainda capturavam outros índios, esses cativos podiam ser também colonos europeus e os escravos africanos, mas geralmente os cativos eram mulheres e, principalmente crianças. Como eles eram nômades, a prática do infanticídio e do aborto eram muito comuns. Então, eles capturavam as crianças e as criavam como guaicurus para repovoar as aldeias desse povo. Grande parte dos cativos faziam o trabalho mais pesado, como escravos mesmo, porém muitos conseguiram ser incorporados a sociedade guaicuru. Veja aqui a prática da integração, não era o DNA ou a descendência sanguínea que fazia com que alguém se tornasse guaicuru, mas sim seus méritos e feitos.

Durante os séculos seguintes as coisas não foram boas pros europeus, mas no fim do século XIII havia grande interesse na região pra definir fronteiras, então houve um esforço de paz dos portugueses para com os índios. De primeiro momento não ocorreu conforme os brancos achavam que deveria, sendo que muitos portugueses foram mortos dentro do forte mesmo, mas depois chegaram a um entendimento. Inclusive muitos índios lutaram pelo Brasil na guerra do Paraguai. Eles mantiveram assim sua liberdade e suas áreas de influência.

Vejam o que diz o Overblog sobre os mesmos:

“Em sua trajetória histórica, resistiram com grande poder de adaptação, chegando até à segunda metade do século XIX com força para impor temor aos inimigos. Atravessaram o século XX mantendo fortes traços culturais conseguindo chegar ao século XXI conservando certo grau de independência e a posse de uma reserva territorial cuja área encontra-se dentro do Município de Porto Murtinho (MS).

Hoje, estão representados pelos Kadiwéu, remanescentes da divisão de antigas tribos Mbayá-Guaicuru. Sobreviventes que, mais uma vez, tentam adaptar-se ao processo civilizatório que continua a pressioná-los com intolerância e etnocentrismo, resistindo ao assédio da sociedade envolvente que ainda pretende conquistar-lhes a alma e tomar-lhes as terras.

Símbolo de resistência contra a deculturação compulsória, os Kadiwéu têm uma História que o povo brasileiro deveria conhecer melhor, não apenas pela ferocidade com a qual foram julgados bárbaros e cruéis no passado – traço que a civilização experimentou muitas vezes – mas pela capacidade de lutar e se adaptar sem perder a própria identidade.”

“No centro da mata eu vi, dois nomes gravados num toco de pau
No centro da mata eu vi, dois nomes gravados num toco de pau
De um lado Seu Rompe Mato, de outro Seu Cobra Coral
De um lado Seu Rompe Mato, de outro Seu Cobra Coral
No centro da mata virgem eu vi, Seu Rompe Mato falava na língua do Guarany
No centro da mata virgem eu vi, Seu Rompe Mato falava na língua do Guarany”.

O que podemos concluir de toda essa história? Que nenhuma outra falange que eu tenha conhecimento é representada tão bem na sua suposta ancestralidade. Índios guerreiros, que sabiam usar a lança e o cavalo e que nunca foram subjugados, sendo assim, muito próximo dos domínios e atribuições dadas ao próprio Orixá Ogum! Apesar de seres ferozes e até mesmo bárbaros, eles tinham o respeito e o medo de todos da região, sendo pretendidos por tantos outros, por isso mesmo que a própria falange dos Rompe-Matos é pouco vista hoje nos terreiros, pois eles não se prestam a trabalhos de fundo ilusório pela simples manifestação do fenômeno. Tem muita gente que DIZ trabalhar com o Caboclo ou com o Ogum Rompe-Mato, porém avalie o médium. Esses falangeiros jamais irão se utilizar de médiuns que não tragam dentro de si os mesmos valores pelos quais eles acreditam e lutam. Eles jamais descem a terra se for pra perder! Saravá Seu Ogum Rompe-Mato, Saravá seu Caboclo Rompe-Mato! Que vossas forças estejam sempre conosco divinos guerreiros de Ogum e de Oxóssi!

Referências sugeridas nas fontes pesquisadas: 

Os Caduveos, Guido Boggiani, Itatiaia, 1975 – O autor, um artista italiano que se estabeleceu no atual Mato Grosso do Sul e conviveu com as tribos da área no fim do século 19, retratou os desenhos, a cerâmica e até a música dos kadiwéus (ou caduveos)

Red Gold – The Conquest of the Brazilian Indians, John Hemming, MacMillan, 1995 – Excelente apanhado dos combates entre os guaicurus e paiaguás e os brancos que invadiam seu território em busca de ouro, baseando-se nos cronistas coloniais que escreveram sobre o assunto

BOGGIANI, Guido. Os Caduveo. Introdução de Herbert Baldus. Prefácio de G. A. COLINI. São Paulo: Livraria Martins, 1945.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. 1. Reimpressão – São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatório: estudos de antropologia da civilização; etapas da evolução sócio-cultural. 4. Ed. – Petrópolis: Vozes, 1978.

Fontes: Overmundo – Texto de Marcos Paulo Carlito e Guia do Estudante, Ed. Abril.

 

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