Ao longo de toda a década de 1980 e início da de 1990, a minha família costumava passar as férias de verão na cidade de Tramandaí, no litoral norte do Rio Grande do Sul. Como toda criança, eu achava divertidíssimo esse período que era aguardado com ansiedade ao longo do ano. Para um menino interiorano como eu, já era interessante o simples fato de passar alguns dias em uma cidade maior, com mais movimento e muitas coisas diferentes para se ver. Tendo praia, parque de diversões e sorvete, melhor ainda.

A única coisa que me desagradava era a localização da casa dos familiares onde costumávamos ficar: exatamente em frente ao Pronto-Socorro da cidade e ao lado do necrotério municipal. Frequentemente ouvíamos as sirenes das ambulâncias e viaturas policiais que adentravam velozmente à rua trazendo pessoas com toda sorte de ferimentos e – em função da época de veraneio – muitas vítimas de afogamento. Por diversas vezes presenciamos o desespero de familiares perante as notícias fatídicas que se abatiam sobre seus entes queridos, e testemunhar todo aquele choro e gritaria me deprimia consideravelmente.

Tal situação só não era pior do que os pesadelos recorrentes que me afligiam quase que todas as noites durante os períodos que passávamos naquela casa, por diversos anos consecutivos. Da maioria destes pesadelos eu não guardo senão vagas lembranças, difusas e distorcidas, mas daqueles que me acometeram em um verão especifico – quando eu devia estar com a idade de 12 anos – eu lembro bem, em função de seu teor bizarro.

Frequentemente eu me via diante do hospital, à noite, e presenciava pessoas correndo pelo estacionamento – que se ligava ao necrotério – ou pelos corredores mais próximos da entrada, gritando e chorando em desespero, fugindo de sujeitos grotescos, de aparência sombria e ameaçadora. Pelo tom recorrente, hoje entendo que pelo menos uma boa parcela daqueles pesadelos consistia em desdobramentos astrais involuntários, que me faziam testemunhar espíritos de pessoas que estavam no hospital – adormecidas, talvez em coma ou recém-falecidas – sendo perseguidos por obsessores que provavelmente habitavam aquela região tão triste da cidade justamente para absorver as emanações de dor e sofrimento que ali havia, além da eventual possibilidade de assediar os desencarnados que por lá se encontrassem a esmo.

Na época eu nunca tinha ouvido falar em Allan Kardec, doutrina espírita, obsessores ou encostos, de tal forma que, para mim, aquelas horrendas entidades perseguidoras eram classificadas apenas como vampiros.

Como aquele verão foi particularmente mais trágico do que de costume, o burburinho de sirenes, choros e gritos era maior, assim como a frequência de meus terrores noturnos. Eu acordava durante a noite apavorado, suado e às vezes chorando, e seguidamente aguardava o nascer do sol em claro, com medo de voltar a sonhar com os terríveis vampiros.

Lembro-me de uma noite em que, após adormecer, dei por mim dentro do necrotério e a visão que tive ali foi horripilante. Em meio às paredes sujas e descascadas, havia gavetas de metal que logo entendi que serviam para armazenar os cadáveres. No centro da sala, uma mesa de dissecação ainda manchada de sangue e com os instrumentos cirúrgicos ensanguentados espalhados de forma desleixada. De repente, escutei um grito horrível e quando olhei na direção do corredor, vi uma maca conduzindo uma moça que chorava pedindo por socorro. A maca era empurrada por dois ou três vampiros que riam sadicamente perante o desespero da pobre vítima.

Invadido pelo mais genuíno pavor, eu já estava prestes a começar a chorar também, quando, subitamente, três ou quatro indivíduos diferentes – vestidos de branco, de tal forma que me lembraram de enfermeiros – apareceram não sei de onde e seguiram pelo corredor, dando a impressão de que estavam ali para resgatar a moça.

Não sei direito o que se passou em seguida, pois quando percebi estava de volta no meu quarto. Porém, continuava me sentindo angustiado, como se uma presença maléfica tivesse me seguido do necrotério até ali. Através da veneziana, pude perceber uma sombra que se movimentava sorrateiramente do lado de fora. Tirando coragem não sei de onde, me esgueirei até a janela e espiei para fora. O que vi me deixou tão assustado que acredito ter simplesmente perdido a consciência: do lado de fora, um dos vampiros estava parado no quintal, me encarando com um sorriso maléfico no rosto, como se ansiosamente aguardando uma possibilidade de se infiltrar no interior da casa. Graças a Deus, isso não aconteceu.

Deve ter ocorrido um lapso de tempo em seguida, ou simplesmente apaguei da memória o que aconteceu imediatamente depois. Lembro apenas de um momento posterior, quando os primeiros raios do sol que anunciava o novo dia incidiram suavemente pelas frestas da janela, e, tomado por uma sensação reconfortante, decidi, de forma instintiva, espiar novamente. Desta vez a visão foi totalmente diferente. Próximo ao muro que delimitava a propriedade estava parado um ancião de pele negra, barba grisalha e porte atarracado, vestindo roupas brancas e um chapéu de palha. Ele não fazia nada especificamente, apenas permanecia ali como se vigiando, quem sabe para impedir que as forças maléficas voltassem a rondar os arredores. À luz do sol nascente, a visão daquele indivíduo de aparência pacata e amistosa pareceu me restabelecer a serenidade, de forma que finalmente adormeci e só acordei horas depois.

Naquele dia, toda a família se divertiu muito na praia, mas eu passei o tempo todo tentando disfarçar o meu receio de que os pavores da noite anterior se repetissem após o por do sol.

Quando já estava começando a entardecer, pouco antes do horário habitual de deixarmos a praia e retornarmos para casa, meu irmão – que tinha apenas cinco ou seis anos na época – decidiu correr pela orla no sentido sul e a minha mãe pediu para que eu o acompanhasse e depois o chamasse para voltar. Ele não costuma se interessar em sair dos arredores, mas naquele dia, por algum motivo daqueles que só entendemos o sentido posteriormente, decidiu que queria ir até uma parte menos habitada da praia, onde havia um belo monumento em honra a Iemanjá.

Lembro de ter ficado parado na areia, contemplando a bela estátua da mãe regente das forças do mar, quando meu irmão se aproximou trazendo um pequeno crucifixo de madeira, rústico, mas bonito em sua simplicidade.

– Onde achou isso? – perguntei.

– Atrás da estátua. – respondeu o meu irmão.

– E por que pegou? – reclamei.

– Porque o vovô que estava lá disse que podia.

– Um vovô?! Que vovô?

– Um preto, de chapéu.

E, sem acrescentar mais nada, o menino correu de volta para a área onde estavam nossos pais, deixando o crucifixo na minha mão. Desnecessário dizer que não vi vovô algum pelos arredores, mas intuitivamente a imagem daquele simpático ancião que eu havia vislumbrado ao amanhecer me veio à mente.

No retorno, não contei nada aos meus pais (apenas na adolescência, com a intensificação dos meus sintomas de uma mediunidade não desenvolvida é que eles passaram a se preocupar e cogitar me encaminhar para tratamento psicológico), mas ao ir para cama, fiz uma oração fervorosa com o crucifixo em mão e depois o coloquei debaixo do travesseiro.

Não voltei a sonhar com os vampiros naquela noite ou em qualquer outra entre as que permanecemos em Tramandaí. O único sonho posterior daquela temporada de veraneio do qual me recordo teve um teor bem diferente: era de tarde e estávamos diante da casa, meu irmão e eu, brincando com uma pequena carroça na qual eu o puxava de uma esquina a outra pela calçada. Fomos até o fim da rua e, ao retornarmos, tive aquela sensação característica de estar sendo observado. Quando olhei para trás, vi aquele simpático idoso parado na esquina e ao lado dele uma senhora, também negra e de baixa estatura. O amigável casal de velhinhos acenou cordialmente e depois seguiu em silêncio na direção da praia, deixando para trás uma sensação de paz e tranquilidade.

Por uma série de razões, a minha família nunca mais voltou a veranear em Tramandaí. Eu só estive lá novamente muitos anos depois, já adulto. Não fiquei hospedado na mesma casa, mas ao passar por lá e, consequentemente, pelo Pronto-Socorro e pelo necrotério, senti uma vez mais aquela sensação desconfortável de ameaça, o que me fez acreditar na possibilidade de que os vampiros – os mesmos, ou outros que vieram para tomar o lugar daqueles – ainda habitam os arredores, sorvendo dor e tristeza, e incitando medo e angústia.

E os pretos velhos? Creio que enquanto houver espíritos vulneráveis – mas, ao mesmo tempo merecedores de amparo e proteção – circulando por aquela região, com certeza eles também estarão por lá.

 

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