Por Eugenio Lara

Já perdi a conta das vezes que me perguntaram, durante a palestra em centros espíritas, sobre a origem do pseudônimo Allan Kardec, adotado pelo grande pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail na assinatura de sua obra espírita. Teria sido mesmo ele um druida? Em que época viveu? Por que Rivail adotou esse estranho pseudônimo? Trata-se de um tema controverso, principalmente devido à carência de fontes fidedignas.

Nós, espíritas, aceitamos que Allan Kardec foi uma das encarnações de Denizard Rivail, mais pela tradição oral, pelo argumento de autoridade do que pela escrita, pelas fontes históricas. O primeiro biógrafo de Kardec, Henri Sausse (1851-1923), afirmou em uma conferência comemorativa de sua desencarnação, em 1896, que o fundador do Espiritismo teria tido uma encarnação entre os celtas: “segundo lhe revelara o guia, ele tivera ao tempo dos Druidas.” Um detalhe: esse guia a que Sausse se refere é o Zéfiro (ou Zephyr), espírito protetor de Rivail.

Sausse não cita a fonte dessa informação e nem afirma explicitamente que ele teria sido um druida. Muito provavelmente ele teve acesso a dados biográficos compartilhados por contemporâneos e amigos mais íntimos de Rivail, à sua correspondência e seus manuscritos, ainda intactos, mas que seriam destruídos, em sua quase totalidade, durante a II Guerra Mundial pelos nazistas, quando invadiram a França e ocuparam Paris.

Todavia, Sausse não é a única fonte. Se formos confrontá-la com outras disponíveis, a compreensão torna-se mais obscura ainda, controversa, deixando o tema ainda em aberto.
A seguir, o leitor poderá apreciar um panorama das fontes históricas existentes, de fontes primárias, apesar de contraditórias, que evitariam afirmações equivocadas e pouco fiéis acerca da origem do pseudônimo do fundador do Espiritismo.

HENRI SAUSSE

“Esse livro [O Livro dos Espíritos] era em formato grande, in-4, em duas colunas, uma para as perguntas e outra, em frente, para as respostas. No momento de publicá-lo, o autor ficou muito embaraçado em resolver como o assinaria, se com o seu nome — Denizard-Hippolyte-Léon Rivail, ou com um pseudônimo. Sendo o seu nome muito conhecido do mundo científico, em virtude dos seus trabalhos anteriores, e podendo originar uma confusão, talvez mesmo prejudicar o êxito do empreendimento, ele adotou o alvitre de o assinar com o nome de Allan Kardec que, segundo lhe revelara o guia, ele tivera ao tempo dos Druidas.”

“Assim, também, se deu a respeito do seu pseudônimo. Numerosas comunicações, procedentes dos mais diversos pontos, vieram reafirmar e corroborar a primeira comunicação obtida a esse respeito.”

(Biografia de Allan Kardec – FEB – Grifo meu).

CANUTO ABREU

“Uma noite veio o Professor com Madame RIVAIL. Nosso Guia os recebeu amistosamente, saudando o professor com estas palavras: — ‘Salve, caro Pontífice, três vezes salve!’. Lida, em voz alta, a saudação, todos rimos. Para nós, ZEPHYR estava pilheriando. Papai, então, explicou ao Professor o costume do Espírito Familiar apelidar quase todos os visitantes. O senhor RIVAIL não se agastou e respondeu ao Guia, sorrindo — ‘Minha bênção apostólica, prezado filho’. Nova risada geral. ZEPHYR, porém, respondeu ter feito uma saudação respeitosa, a um verdadeiro pontífice, pois RIVAIL havia sido, no tempo de Júlio CÉSAR, um chefe druídico.”

“— UMA NOITE, INESPERADAMENTE, disse-nos ZEPHYR: — Vocês irão brevemente para Paris. BAUDIN arrumará os seus negócios; Emile entrará na Escola Naval; Caroline e Julie tomarão professoras mais competentes e… encontrarão seus noivos; e eu, ZEPHYR, procurarei contato com um velho amigo e chefe desde o ‘nosso’ tempo de Druidas.” (O Livro dos Espíritos e Sua Tradição Histórica e Lendária – Ed. LFU – grifo meu).

LÉON DENIS

O continuador da obra kardequiana[1], Léon Denis (1846-1927), sustenta que Allan Kardec não teria encarnado como druida na Bretanha, mas sim na Escócia. O próprio Denis considerava-se um druida reencarnado, chamado por Arthur Conan Doyle de “O Druida de Lorena”:

“Foi nessas profundas fontes que Allan Kardec ilustrara seu espírito; foi com meios idênticos que ele viveu outrora. Não na Bretanha, talvez, mas antes na Escócia, segundo a indicação de seus guias.” (…) “Kardec ali aprendeu a filosofia dos Druidas; preparava-se no estudo e na meditação para as grandes empresas futuras.”

“(…) Até o nome de Allan Kardec, que escolheu, até este dólmen erigido no seu túmulo por sua expressa vontade, tudo, digo eu, lembra o homem do visco do carvalho, que voltou a esta Gália para despertar a fé extinta e fazer reviver nas almas o sentimento da imortalidade.”
(O Mundo Invisível e a Guerra, cap. VI – Ed. CELD).

ALEXANDRE DELANNE

O pai de Gabriel Delanne, grande amigo e vizinho de Rivail, ao lado do filho e da esposa, médium da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), fundaram o periódico “Le Spiritisme”, em março de 1883. Em um artigo deste periódico, Alexandre Delanne revela um dado bem interessante, que destoa das fontes conhecidas:

“Há ainda um outro detalhe que temos do próprio autor [Kardec]. Veja como ele apresenta o pseudônimo que haveria de assinar seus escritos: Você tomará o nome de Allan Kardec, que nós te damos. Não se preocupe com isto, ele é seu, você já propiciou muita dignidade em uma encarnação anterior, quando vivia na antiga Armórica.” – (Le Spiritism, maio de 1888 – Grifo meu).

Na Antiguidade, Armórica era o nome de uma região da lendária Gália, território dos celtas gauleses, que incluía a península da Bretanha, localizada a oeste da atual França.

AMÉLIE BOUDET

“— Todos os literatos – responde Madame Kardec – adotam pseudônimos. Meu marido jamais pilhou coisa alguma”. Em resposta à insinuação do promotor público de que Rivail teria retirado o pseudônimo Allan Kardec de um manual de magia negra. (Mme. Leymarie – Processo dos Espíritas – FEB).

GEORGES D’HEILLY

O escritor francês Georges D’Heilly publicou um interessante livro em 1867, intitulado “Dicionário de Pseudônimos”. O autor afirma que o próprio Rivail contou-lhe a origem de seu codinome:

“Quanto à escolha de seu pseudônimo, ele próprio [Rivail] contou sua origem. Tinha-lhe sido revelado, diz ele, pelos espíritos, que numa encarnação bem anterior à vida presente, chamava-se realmente assim, e também, como tal, foi chefe de um clã bretão no século XII.” (Dictionnaire des Pseudonymes, recueillis par Georges D’Heilly, p. 7 (56) – 2ª ed. E.Dentu, Libraire-Éditeur – Libraire de la Société des Gens de Lettres, Paris-France [1869]. Tradução de Eugenio Lara).

ALLAN KARDEC

Não há fonte mais convincente do que ouvir do próprio Denizard Rivail o que ele tem a dizer sobre seu pseudônimo. Entretanto, ele sempre foi discreto quanto à sua origem. Nada consta em sua obra publicada. Pelo fato de seu nome civil ser muito notório e reconhecido nos meios culturais e científicos franceses, o fundador do Espiritismo preferiu assinar com outro nome, um pseudônimo, a exemplo de escritores e literatos, a fim de não causar confusão. Como sempre fazia, consultou os espíritos, certamente O Espírito de Verdade, seu guia espiritual. Todos os biógrafos de Kardec são unânimes quanto a esse seu procedimento básico.

O ideal seria termos acesso à correspondência e manuscritos de Rivail. No entanto, o que não foi destruído também não é divulgado. Boa parte do patrimônio kardequiano encontra-se em poder da família do historiador e tradutor Silvino Canuto Abreu (1892-1980). O Museu Espírita de São Paulo, localizado na Lapa, Grande São Paulo, fundado e dirigido por Paulo Toledo Machado, expõe uma pequena parte deste patrimônio, doado pela família.
Deste acervo, temos acesso a uma carta de Rivail ao barão e empresário Tiedeman, “amigo seu e dos espíritas”, segundo o biógrafo André Moreil, que hesitou em investir no projeto da “Revista Espírita”:

“Duas palavras ainda a propósito do pseudônimo. Direi primeiramente que neste assunto lancei mão de um artifício, uma vez que dentre 100 escritores há sempre ¾ que não são conhecidos por seus nomes verdadeiros, com a só diferença de que a maior parte toma apelidos de pura fantasia, enquanto que o pseudônimo Allan Kardec guarda uma certa significação, podendo eu reivindicá-lo como próprio em nome da Doutrina. Digo mais: ele engloba todo um ensinamento cujo conhecimento por parte do público reservo-me o direito de protelar… Existe, ainda, um motivo que a tudo orienta: não tomei esta atitude sem consultar os Espíritos, uma vez que nada faço sem lhes ouvir a opinião. E isto o fiz por diversas vezes e através de diferentes médiuns, e não somente eles autorizaram esta medida, como também a aprovaram.” – (Zeus WANTUIL e Francisco THIESEN, Allan Kardec – vol. II, p. 76).

ANNA BLACKWELL

A jornalista, poetisa e tradutora inglesa Anna Blackwell (1834-1900) conheceu pessoalmente, na intimidade, o casal Rivail. Tornou-se correspondente da “Revista Espírita” na Inglaterra, em 1869. Verteu “O Livro dos Espíritos” para o inglês, em 1875, tradução esta dedicada à esposa de Rivail, Amélie Boudet:

“E você o publicará [O Livro dos Espíritos], não com seu próprio nome, mas sob o pseudônimo de Allan Kardec (*). Guarde seu nome próprio Rivail para seus próprios livros já publicados, mas tome e guarde o nome que agora lhe demos para o livro que você irá publicar sob nossa ordem, e em geral, para todos os trabalhos que você terá no desempenho da missão que, como já dissemos, lhe foi confiada pela Providência e que será gradualmente aberto a você na medida em que prosseguir nele, sob nossa orientação”.
(*) “Um antigo nome Bretão da família de sua mãe.”
(Prefácio à tradução inglesa, de Anna Blackwell em The Spirit’s Book – FEB, tradução de Myrian de Domênico Rodrigues).

ALEXANDRE AKSAKOF

A partir de depoimentos pessoais de Ruth Celina Japhet, médium colaboradora de Kardec, o pesquisador russo Alexandre Aksakof (1832-1903) publica um artigo em 1875, onde critica a formulação do conceito de reencarnação na França. Editado por ocasião do lançamento da tradução inglesa de “O Livro dos Espíritos”, por Anna Blackwell, o artigo causou, na época, muita celeuma. Pierre Gaëtan Leymarie e Anna Blackwell contestaram Aksakof de forma contundente. O médium citado, Roze, era membro da SPEE e a médium Japhet colaborou na revisão completa, com adições e correções nos originais da primeira obra espírita:

“Como ele [O Livro dos Espíritos] também foi anexado a um jornal importante, o L’Univers, ele [Rivail] publicou seu livro com os nomes que ele teria tido em suas duas existências anteriores. Um destes nomes era Allan — revelado a ele pela senhora Japhet, e o outro nome, Kardec, foi revelado a ele pelo médium Roze.” – (Pesquisas Sobre a Origem Histórica das Especulações Reencarnacionistas dos Espiritualistas Franceses, artigo originalmente publicado no periódico londrino “The Spiritualist Newspaper”, em 1875. Tradução de Vital Cruvinel – Grifo meu).

JACQUES LANTIER

O sociólogo francês realizou um interessante e abrangente estudo histórico-sociológico sobre o Espiritismo, onde cita trecho de uma carta redigida por Allan Kardec sobre seu pseudônimo:

“O Sr. Leymarie, editor e livreiro, na rua Saint-Jacques nº 32, herdeiro de Pierre-Gaëtan Leymarie, um dos pioneiros do espiritismo, fez-me saber que possuía um documento manuscrito de Allan Kardec, até hoje inédito, no qual este explica a “verdadeira” origem do seu pseudônimo: Rollon, primeiro duque dos Normandos, no século IX, teve um filho que foi curado por um chefe de comunidade que se chamava Allan Kardec.” (O Espiritismo, p. 71. – Edições 70 – Grifo meu).

CARLOS IMBASSAHY

Para finalizar, citamos o grande escritor espírita brasileiro Carlos Imbassahy, não por ser uma fonte primária, mas porque seu depoimento é imprescindível neste caso, como um argumento de autoridade, que corrobora a existência do misterioso acervo kardequiano, o qual teve acesso, em função da amizade com Canuto Abreu:

“Revelaram os espíritos que Denizard Rivail, em encarnações anteriores, vivera na Gália, onde se chamara Allan Kardec. Daí a proveniência do pseudônimo que adotou. Em nova encarnação fora o infortunado João Huss.”

“A notícia de que Allan Kardec tivera uma existência ao tempo de Júlio César data de 1856; a de ter sido João Huss veio em 1857.”

Revelaram os Espíritos que Denizard Rivail, em encarnações anteriores, vivera na Gália, onde se chamara Allan Kardec. Daí a proveniência do pseudônimo que adotou. Em nova encarnação fora o infortunado Jean Huss. A notícia de que Allan Kardec tivera uma existência ao tempo de Júlio César data de 1856 e a de ter sido Jean Huss veio em 1857; ambas por via medianímica: a primeira pela cestinha escrevente de Baudin, com a médium Caroline; a última por psicografia de Ermance Dufaux.

As fontes preciosíssimas – esclarece o Dr. Canuto Abreu – estavam, em 1921, na Livraria de Leymarie, onde ele as copiara na sua quase totalidade. Passaram em 1925 para o arquivo da Maison des Spirites, onde os alemães, durante a invasão de Paris, as destruíram em 1940.

Carlos Imbassahy ainda cita uma enciclopédia inglesa que consideramos oportuno transcrever:

“His pseudonym originated in mediumistic communications. Both Allan and Kardec were said to have been his names in previous incarnations”.

“Seu pseudônimo é originado de comunicações medianímicas. Diz-se que Allan e Kardec foram os seus nomes em encarnações anteriores.” – (A Missão de Allan Kardec – Ed. FEP).

Como se vê, as informações são contraditórias. Em encarnação anterior, teria vivido Rivail na Escócia ou na antiga Bretanha? Mas, e a reencarnação como Jean Huss, como fica? Foi druida ou chefe de comunidade? Allan Kardec é um nome próprio ou é junção de Allan com Kardec? A questão se complica ainda mais se formos analisar a origem etimológica do nome próprio Allan Kardec, segundo a transcrição de Jacques Lantier. Não é de origem céltica, porque provem do germânico, melhor dizendo, dos normandos, oriundos da atual Dinamarca. Aquele Allan Kardec é de origem normanda, viking. Fosse gaulesa, talvez fosse Alan Karderix. Ou seja, nunca existiu um druida de nome Allan Kardec. Mas, essa é uma questão para ser abordada em outra oportunidade…

NOTA do Jornal:
1 – Não é certo que Léon Denis foi o continuador das obras de Kardec, faz-se necessário esclarecer que as obras dele não foram compostas sob o controle e a metodologia do C.U.E.E – Controle Universal de Ensino dos Espíritos. A afirmação do autor neste ponto do artigo, faz parte de sua opinião e visão pessoal, e não, uma constante doutrinária.

Artigo originalmente publicado em http://www.cienciaespirita.org/sobre-o-pseudonimo-de-denizard-rivail/

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